quarta-feira, fevereiro 01, 2006

Ontem em casa

Lembro-me como se fosse hoje. Lembro-me com cada centímetro de pele, uma memória orgânica, animal.

Noites de há muitos anos.
Na casa que escurecia, enterrado na cama, enfrentava medos e desalinhos do dia que passava. Debaixo da noite, debaixo dos lençóis, reinventava a minha aventura privada, intima. No meio da neve, debaixo de peles, atravessava a intempérie branca. Ouvia o barulho dos cães, o sussurro do manto nevado, os estalidos das árvores à minha passagem. Outras vezes náufrago ou navegante solitário, adormecia enroscado no convés, entre a maravilha e o assombro do mar à minha volta, agasalhava-me no céu, estrelas, gritos de gaivotas.
Quanto mais agreste era o mundo que me rodeava, e que recriava, maior a sensação de imperturbável paz, de perfeita harmonia, recolhido e aquecido a bafo entre mãos rugosas e firmes.
O mundo caía e eu enfrentava essa desordem com gestos simples e duradouros, sombra e luz de uma música que só eu ouvia.

A memória tem destas coisas, orgânicas, sedimentares.
Acabei de ler ontem ALMA do Manuel Alegre.

Num dos últimos capítulos conta-nos como a sua família esperava por alguém que os viria, talvez, prender, levar para algum local indizível de onde quase nunca se regressa. Uma espera tranquila e tensa, rodeada dos gestos simples e inequívocos que são o reduto da alma.

Ontem, em casa, lia e à minha volta dormiam as filhas, novelos de lã, os gatos ao borralho, dedos que percorrem as páginas de um livro. O cheiro da noite, um grito de gaivota, um sussurro de neve.
Caminhantes num deserto de neve, recolhidos na nossa jangada. Impenetráveis e tranquilamente decididos, como a eternidade.

Sombra e luz de uma música que só eu ouvia.

2 Comments:

Blogger Elsa Gonçalves said...

Fico muito contente por te ouver/ler os cantos das gaivotas.
Beijos, abraços e muitos palhaços.
maria

11:01 da tarde  
Blogger Elsa Gonçalves said...

Vim agradecer-te o comentário. Soube-me bem ouvir um incentivo de formar poética. Soube-me mesmo bem. E sim, vai saber-me muito bem a vitória que vier! Beijo grande. Abraços e muitos palhaços.
maria

10:00 da tarde  

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