segunda-feira, fevereiro 06, 2006

Ciganos e cabarets

Embora leigo e diletante, a Europa Central sempre exerceu um fascínio sobre mim. Sei que nunca foste a Budapest. Eu fui. Se te puder mandar algumas impressões, tenta recolher a colina do palácio, onde não entrei, mas cuja presença basta para impor – digo impor porque é uma presença impositiva, incontornável, de uma corte imperial, majestática. Dos parques que a circundam, quase bosques, o funicular, a ponte das correntes, o palácio Gresham, notória companhia de seguros, iluminado por vitrais e candelabros, onde se respira um ar de espiões vindos do frio…as termas do Gellert, onde se continua a discutir futebol, o grande Pushkas, assuntos domésticos e outros intemporais, dores de costas, poemas, a língua magiar ondulante entre os vapores e os azulejos. Também um ar de guerra, coisa que sempre desconhecemos neste cantinho, mas guerra de mão cheia, massacres de milhões, genocídios, terra queimada. E o Danúbio, donde chegam hoje os turistas alemães, mas por onde gostaria de ter navegado com esse tal Maltese, filho incerto de mãe gibraltina e pai da Cornualha.

Há alguns anos fui a Berlim pela primeira vez, de comboio.
Atravessei os campos num estreito corredor de arame farpado, cheguei a uma cidade com construções dos anos 50, ruínas, e no entanto uma vibração que ameaçava a todo o momento parir algo maior do que se via. Havia ainda muro, na altura, embora repassado a todo o momento por turistas, soldados americanos de folga, e eu, está claro. A sensação era que tudo mudava ou estava para mudar, a cidade era uma dançarina de cabaret, que veste e despe os fatos de cena, em progressão até ao gran finale.
Mas de tudo o que me surpreendeu e fascinou – para além das visitas aos locais da memória e do imaginário, das praças de Berlim-Leste, as lojas do povo, a torre da televisão, Check-Point Charlie, Pergamonmuseum, o câmbio de rua e os parques banhados por um calor de Verão em Maio – o que lembro é da existência não física de uma cidade.
Coisas do Major Alvega, podem dizer.
Talvez.

Mas para mim Berlim sempre foi a capital dessa Alemanha da minha memória. Uma grande cidade, que foi ocupada pelos inquestionáveis assassinos, mas também onde um dia existiram os palácios reais, os imperadores, Beau-Séjour. A estátua de Nefertitii. A voz de Marlene Dietrich, Lilli Marlene, um anjo azul, Bertold Brecht, notal melancólicas e grandiosas.
Alguns palácios ainda lá estão, Beau-Séjour, de que se salvam principalmente os jardins. Outros existem em maquetes, quase escondidas.
E no entanto existiram.

História sobre história, gente sobre gente, em camadas de pó sedimentar.

Budapest e Berlim.
A cantora de cabaret e a cigana de sangue.