quarta-feira, fevereiro 15, 2006

Alguem a ver o mar


Escrever organiza-me, costumo dizer.
Na verdade, nem sei se a ideia é mesmo essa. A escrever vou-me descobrindo, e descobrindo estados de alma. Nem sempre os que descrevo, mas os que vivo escrevendo.

Palavra por palavra, ilumino sombras, o meu corpo arrumado ou desarrumado, os meus dedos certeiros ou hesitantes. As minhas ruínas e os meus jardins, as marcas do corpo, tatuagens, beijos e tormentos. Olho pela janela por onde entra o ar lunar, o ruído dos carros ao fundo, escrevo, há uma cantora checa que canta bossa nova, um cigarro a meio, uma vida suspensa, um cheiro a maresia.

E mais fundo, debaixo da terceira estação da alma, surge o mar. Quase doloroso, no limite da carícia, a carícia extrema. Há espuma que forma letras, canções de marear, a luxúria das ondas, noites marcadas na pele a sangue, o riso dos amigos, o sussurro dos beijos, o descobrir o sabor da amante, as horas a descompasso. Árvores no Inverno, a relva molhada, o caminho entre as dunas, a chuva, o tremer antes de chegar à boca, à pele, ao enlaçar dos dedos, à espera. O chá em Colares, o pinhal, a falésia. Um barco que atravessa comigo o rio, Porto Brandão, as luzes da ponte, o cheiro a viagem, a luz vermelha do sol nos vidros. A cantora checa, o ar entre as estrelas, o recorte da noite, jornais, café.

Levanto a gola do casaco, tenho sal nos lábios e no cabelo, não espero nem tenho saudade, estou neste momento roubado ao tempo, sou os meus jardins e as minhas ruínas, sou o gosto do azul, o vento na cara, sou alguém que vê o mar.

1 Comments:

Blogger Fokas said...

"João Glberto passou por aqui e fez uma das suas gilbertadas:não me telefonou nem procurou, não sei porque se esqueceu (ou gastou o dinheiro) de dar à Dora os US$ 100 que eu lhe mandara para me conseguir dois amortecedores dianteiros para o Mercedes; ou talvez não estivesse in the mood..."

Carta do Vinícius para Jobim, 29 Janeiro 1963.

7:10 da tarde  

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