terça-feira, fevereiro 21, 2006

Desenho num papel


Há uns anitos atrás – não digo quantos, apenas que na altura ainda havia uns retratos do Sr. Almirante pendurados na sala de aula - passava eu tardes de sofrimento atroz a espreitar a luz que escorria pelo céu e talvez uma presença no 1º esquerdo que pudesse aliviar o meu tormento. No turbilhão hormonal que então me varria, erguia a solidão como uma bandeira, vibrava no ar iluminado ou nos bancos húmidos dos jardins, sonhava beijos únicos e a geografia de uma pele que desconhecia. Lia Daniel Filipe e Nuno Júdice, a simples presença dos livros no meu bolso era como um bilhete de identidade, uma senha e santo que me erguia por cima dos dias cinzentos e do uniforme do Sr. Almirante. Bebia as primeiras bicas, o SG filtro, ouvia sons que chegavam do outro lado do mar, aventurava-me de lápis em punho nas primeiras escritas, desenhava caminhos próprios na cidade, a tarde era a minha casa, íntima e infinita como mais tarde li em Borges.

Nem me lembro bem como conheci o Zé. Pode ter sido por acaso, uma frase solta, uma revolução na aula de OPAN, um cigarro partilhado. Coisas. Nessa altura descobri que os livros do Daniel Filipe e do Nuno Júdice habitavam outros bolsos para além do meu, que havia outro desbravadores de caminhos e bancos húmidos de jardins. As tardes continuaram íntimas e infinitas, e prolongavam-se pelas manhãs, pelos intervalos e furos no liceu, entre bicas na Biarritz e palavras defumadas a SG Filtro. As palavras tornaram-se mesmo as nossas melhores e únicas armas, o contorno visível da alma. Livros, escritos, levantamentos armados, amores mais imaginados que vividos, músicas deste e doutro lado do mar, heróis que povoavam as conversas.

Havia depois a casa na Costa. Ou as sucessivas casas na Costa que colonizámos, o paredão com mar ao fundo, a música feita pelas próprias mão, a aventura da boleia na Praça de Espanha, as fugas na Gilera. A Costa era noite e dia, Inverno e Verão, uma espécie de casa na árvore à beira do mar, com língua e bandeira próprias. E tinha uma cor, o ar tinha essa cor que atravessava o rio e se reflectia nos vidro da cidade, e me desassossegava até não resistir mais e me pôr a caminho desse mar.

Pouco depois chegaram os amores com cheiro de pele, primeiras namoradas, primeiros beijos, a descoberta da geografia do corpo. Havia um sabor a sal e a café, a cigarros e palavras vadias. Medos vencidos e invencidos, o tempo num arrepio, quartos onde gravei juras de amor, onde deixei pedaços de mim, de onde trouxe muito do que sou hoje. Sei que de todas as vezes amei profundamente, e que os amores são intemporais embora acabem. Ficam-nos debaixo da pele para todo o sempre, umas vezes como uma dor, outras numa carícia.
Chegámos a amar a mesma mulher, talvez seja também isso que partilhamos, essa molécula que vive debaixo da pele de cada um de nós.

Mais tarde houve filhos, exílios, Bruxelas e Hamburgo, corredores de hospitais e serviços a desoras. Casamentos, divórcios e alguns funerais. Dias e noites bem e mal dormidas, angustias, alegrias, cores com que se pintam os dias. Reencontros à beira do naufrágio junto ao Tejo, bebedeiras que deixam marca. Brindar o nascer de uma nova era na açoteia da Costa, debaixo do fogo de artifício, com Don Perignon.

Este é para ti.
Foi-me oferecido pela Lisa. A falésia junto à costa com mar ao fundo, desenhada em papel de embrulho. Se reparares bem, adivinhas umas letras esbatidas, estampadas no papel, o nome do café onde ela comprou bolos, antes de o pintar.
BIARRITZ.