terça-feira, abril 11, 2006

As coisas mais terríveis acontecem em dias de sol ou noites de luar - 1


As coisas mais terríveis acontecem em dias de sol ou noites de luar.

Como a estranheza de estar ali, naquele momento, numa hora perdida das outras horas, um tempo desgarrado. No mar nocturno o barco é uma nave iluminada, entre ar e água traça uma estrada de luz amarela. Nos bancos pintados com cores de verão aconchegam-se agora mulheres e crianças, argonautas dos mares de Outubro. Trazem alcofas, os livros da escola, histórias de terra firme, são estranhamente louros, ou ruivos. Não sou um deles, sei, por isso estou entre a luz e a noite, no banco da frente onde o ar frio traz sal e frio, agasalho-me contra a noite que trago no peito.


- São só dois meses. Eu escrevo – prometo.
Mas os olhos não prometiam, resvalando para longe. Como um rio ruidoso que lhe atravessasse a alma, as terríveis águas das despedidas. Deixam pontes de papel atrás de si, dissolvendo-se nas primeiras enxurradas.
Enxurradas de Outubro naquele dia de Agosto.

Acredito em tudo o que me mentes.

Sorri: - Eu sei. Também escrevo, nem preciso prometer.
E as mãos caíram inanimadas, de desencanto. Procuraram por instantes agarrar transparentes fios. Seda dourada que sentia sempre que os nossos dedos se trocavam, subindo em espirais pelos braços, até perfurarem o peito.
Depois guardei-as nos bolsos, doridas de ausência.

Dias passaram. Mas o tempo nem sempre cura. Por vezes seca. Outras vezes vai ardendo cada vez mais. Ardendo pelo Setembro que tenta arrefecer a luz, em ausência. Ardendo pelas horas lunares, intermináveis. Ardendo pelos passos andados sem procurar, com a gola do casaco subida, em sinal de perdição.

Chegaram cartas. De uma cidade de pontes e jardins de relva húmida. De árvores elegantemente despidas em bosques ordenados. Flores de Inverno em preparações festivas. Notícias de passeios agasalhados no mercado de domingo, na margem do rio.
- Gosto desta cidade. Não me importava de morar aqui. Para sempre.

Foi o “sempre” que me empurrou para o Farol: - se tiver que ser para sempre prefiro estar aqui. E arranquei um pedaço de tempo inabitado ao resto do tempo, um deserto de horas entre mim e o mundo. Para a terra de outonos mais esquecidos que conhecia.
Para apanhar mesmo a tempo o último barco, que já de noite transporta as almas anfíbias que moram entre a terra e o mar.

Debaixo da luz amarela que embalava o ruído do motor, senti pela primeira vez a fria carícia da noite sem memórias, a frescura da noite marítima a materializar-se no meu peito. E pensei com esperança que a clemência do esquecimento se apoderava de mim. Num entorpecimento que desafiava o coração desengonçado, adormeci encolhido no fundo do banco de madeira pintado de azul.

2 Comments:

Blogger Fokas said...

Ilhas
Ilhas
Ilhas onde nunca se chegará à terra
Ilhas onde nuunca de descerá
Ilhas cobertas de vegetação
Ilhas escondidas como jaguares
Ilhas mudas
Ilhas imóveis
Ilhas inesquéciveis e sem nome
Lanço meus pés ao mar pois gostaria muito de ir até vós

"No Coração do Mundo"
Blaise Cendrars

12:06 da tarde  
Blogger Elsa Gonçalves said...

E acordei...horas mais tarde, dias mais tarde, semanas mais tarde, anos mais tarde....do entorpecimento que tinha sido o sonho do barco, da trab«vessia anfíbia entre a terra e o mar..e a terra de volta. E anos mais tarde....voltámos todos a acordar do sonho...e, com ramelas nos olhos, coração ao vento, cabeça com cornos duros, dizemos bom dia pela manhã..enquanto o vento não nos leva o sorriso do dia.
Beijo mesmo grande!!! Até à ilha!!!
maria

11:48 da tarde  

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