sábado, março 25, 2006

Amor e chocolates


Penso nos velhos.
Alguns morrem na vida, vão desaparecendo quando perdem maridos ou mulheres, irmãos de sangue. Ou de uma forma mais terrível, quando perdem filhos, quando se apaga neles essa centelha de eternidade, talvez a mais dura provação. Outros vão-se transformando em árvores. Os seus braços e as mãos, finas ou rugosas, estendem-se em ramos, soltam os cabelos brancos como ramagens. Sorriem um sorriso sem tempo, eterno e íntimo, com que aquecem o mundo. Estendemo-nos à sombra das suas palavras, das histórias que sussurram como uma brisa quente que lhes escorre dos lábios, uma música do vento nas folhas. São generosos com quem se senta à sombra do seu silêncio, com quem despreza por instantes a enumeração dos minutos e das horas. Sentados à sua sombra o tempo é uma eternidade. Abraçamo-os e sentimos a seiva pulsando debaixo da madeira do corpo, como se sempre lá estivesse, como se tivesse atravessado todas as gerações desde o princípio do mundo.
Os velhos são os secretos aliados das crianças. Como elas estão dispensados da voragem das horas. Todo o seu espaço é o espaço de um tempo sem tempo, onde desfilam histórias e se oferecem secretamente chocolates. As crianças correm e os velhos recolhem-nos nos seus olhos, como um manto protector que lhes estendem, à distancia que os seus passos já não conseguem acompanhar. Como árvores que criam os sonhos dos homens, os velhos respiram o crescer das crianças. Aquecem-lhes os sonhos a bafo até ao primeiro dia de escola, fazem-lhes torradas com doce, fazem o doce nas horas da escola, e depois sorriem ao lanche. Vão buscar às estrelas vida que os leve até um dia. Em que sejam as crianças a amparar os seus passos. E só então morrem, mas apenas a madeira do corpo que se funde com a terra. Deixam espalhadas pela casa caixas de chocolate, doces, torradas. Histórias que ainda não sei contar. Mãos transparentes e rugosas e um olhar que pousa como um anjo da guarda.
São avós de todas as crianças do mundo

3 Comments:

Blogger poca said...

lindooo...
com essa visão até dá vontade de chegar lá...
beijinhos

9:25 da tarde  
Blogger joão said...

obrigado, criogenado e poca.

entretanto vamo-nos lembrando das coisas verdadeiramente importantes.
da árvore que queremos ser.

bjs

9:58 da tarde  
Blogger Elsa Gonçalves said...

como gosto das histórias que (ainda não) sabes contar. Quero mesmo é continuar a lê-las...
E senti-las como a madeira de que nos vamos construindo.
Beijos, abraços e muitos palhaços.
maria

10:29 da tarde  

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