quarta-feira, março 22, 2006

Há esta praia que me visita


Há esta praia que repetidamente me visita.

Um promontório de peito aberto ao mar, carregando ao colo a casa, isolada como um filho único pelo qual se dá a vida. Um vestido de urze, rosmaninho, esteva, cobre a nudez da rocha como lã grossa, novelos de verde perfumados.
Grossas veias rasgadas por ribeiros, caminhos de terra amarela desenhados no declive do corpo como dedos de um amante.
Por um desses caminhos se chega à casa. Pelo planalto das costas, a curva dos ombros, há sinais, marcas, árvores baixas, flores pequenas como a penugem, cruzo-me com o ar no festejo do dia, na pressa do beijo.
Antes mesmo, o caminho estreita como um túnel vegetal, guia-me o instinto, o cheiro, a luz do mar que se adivinha ao fundo, mergulho, quase perco o pé, respiro de novo, sinto a pele debaixo da lã vegetal, por dentro da pele, por dentro da rocha. Depois o céu abre-se subitamente, há gaivotas pousadas no ar, os pés assentam no céu, a brancura da cal como um pano de linho no qual se rasgam janelas, telhado, portas, ângulos de luz. Como se nascesse de cada vez que lá chego.

Mais abaixo, o areal. A maré baixa que deixa um espelho entre a terra e o mar, fronteiras de luz momentânea, irrepetível. É onde nasce a espuma que se faz mar. Como se a rocha se fizesse terra, a terra areia, a areia luz, a luz espuma, a espuma azul, e depois novamente o céu.

Nela senti a areia escaldante e a outra mais fria que fica por baixo, entre os dedinhos dos pés. Senti o frio salgado do primeiro mergulho, gotas que secam na pele acariciada pelo sol.
Vi como o dia se dissolvia no ar, como a falésia guardava a luz até à outra manhã, junto à casa. Nela descobri que o silêncio é feito de tantos sons, uma corrente de música embrulhada no ar e na terra, o canto das gaivotas, talvez sereias. Ouvi palavras e escutei os dedos que seguravam nos meus. O riso e a noite. Um carro a desaparecer na escuridão, e eu ainda a saber a sal.

Aprendemos a viver de muitas maneiras, até entre as fissuras da parede. Mas o meu mundo tem silêncio e música, palavras e pele, estrelas e caminhos. Casas abraçadas no regaço de promontórios. O doce sabor do vinho no sorriso dos amigos. O cheiro das primeiras chuvas, o cheiro do primeiro sol. O indizível de um beijo, o brilho do olhar. Um carro a desaparecer na noite, a pele a saber a sal, a alegria do cabelo em desalinho. A areia nos pés.

E cada vez que procuro um sentido para a vida chegam-me estas pinceladas, momentos e acasos, talvez anjos. Caminhos de com que tecemos os dias. E então a alma recosta-se, intima. Infinita.

1 Comments:

Blogger poca said...

e confortávelmente... respiramos vida!
a beleza de olhar as pequenas coisas e devolver-lhes a imensidão que têm...

2:57 da tarde  

Enviar um comentário

<< Home