terça-feira, abril 18, 2006

A lua é minha aliada - 2


Durante dias percorri caminhos conhecidos na areia. Descalço, para melhor sentir a carícia da terra que sentia estranha. O labirinto das passadeiras, o calor ou o frio guardados em cada camada das pegadas como estratos da história dos dias passados, uma arqueologia do sentir usando só a pele como instrumento. Vagueei num exercício de memória, duma memória antiga em que os dias tinham sal, o sabor dos gelados, o mergulho suado ao fim do dia de criança-argonauta. Repeti gestos como se de uma alquimia se tratasse, a construção de um sentir pelos ingredientes da pele, dos olhos, do cheiro. Procurar, procurar esse sentido antigo para melhor esquecer as alamedas e miradouros amarelos e azuis da cidade, guardados em olhos ausentes.

Em busca das pegadas deixadas no mar percorri a rebentação, ao longo da praia. Afundei os pés na espuma, nesse território entre a terra e o oceano em busca de um porto de abrigo ainda desconhecido.

Recolhi pedras e conchas no meu no bolso, só a elas me quis agarrar. Caminhei entre o voo das gaivotas, pelo paredão do molhe, uma estaca cravada no Sul, no peito, um prego cravado na cabeça como me disseram depois, mas tudo isso só depois. Foi numa dessas tardes que se abriu uma brecha na obstinação alquímica. Talvez por um vento repentino, uma luz, uma voz vagamente conhecida. Foi então, nesse ocaso de vento que tentei em vão soltar os fios de seda ainda aprisionados no peito, e me puxaram, e me rasgaram a carne e eu sem saber a que elemento pertencia.

Esperei noite após noite o cansaço do corpo, da alma não esperava sossego. E adormecia náufrago pela madrugada.

Um dia de tanto andar não cheguei a casa. Deitei-me debaixo da lua, tapado pela areia, ao sentir que o sono me vencia a meio caminho, essa benesse sempre ansiada.

Novamente sonhei.
Numa jangada, com velas feitas de fina gaze, o vento encontrava enfim nós e fios para soprar. Navegava num arquipélago de areia, um nocturno mar de tranquilidade.
Deitado na jangada via um farol feito de luas, uma após outra percorriam o céu guiando os barcos iluminados. Ouvi canções que do fundo da memória, canções de marinheiros e argonautas. Com risos e aves nocturnas que enchiam o céu.

Nos meus olhos iluminavam-se lágrimas que de imediato subiam para o firmamento, estrelas de mim mesmo, uma chuva brilhante que desafiava a gravidade. E enquanto chorava senti os longos braços do manto lunar, um aconchego feliz, intimo.

Durante toda a noite naveguei, sei, como quem sabe o que ainda não viu nem ouviu, coberto de areia, no arquipélago da lua. Debaixo de um céu de lágrimas luminosas, canções de marinheiros e risos de aves nocturnas. Numa jangada com velas de gaze.

3 Comments:

Blogger joão said...

obrigado, storm.
de facto nessa jangada. umas vezes ao leme, outras á deriva, outras bolina puxada.
mas sem duvida uma aventura

1:10 da manhã  
Blogger Lua said...

mmmmm ok entao.. mas o que eu ganho com isso?rs

9:43 da tarde  
Blogger joão said...

lua,

bemvinda de novo, gosto de ouvir vozes do outro lado do mar.

este é um post em "postas". segue nos próximos capítulos (3 e 4). histórias que vou tecendo, algumas não dão de beber a ninguém, mas por vezes há uma ou outra palavra que pode tocar, um roçar de asa.

entre o que escrevo e o que me lêem há uma história que se vai criando.

esse é o verdadeiro gozo. a história que cresce dentro da história...um pouco como sherazade e o sultão...vai-nos redimindo do veneno.

bom luar, nesse tem planalto de horizontes.

12:01 da manhã  

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