sexta-feira, abril 21, 2006

O meu corpo é de ti feito - 3



Primeiro foi a areia.

Numa breve ondulação as pegadas pareciam mover-se, pequeníssimas dunas transformadas em ondas rebentavam a meus pés numa espuma de pó, transparente, uma suave carícia quase imperceptível. Como se a terra acordasse, num suspiro lento. Depois foi o peso do corpo que senti, por dentro da areia, unido à areia, como uma ponte que se refazia. Fios antigos, nervos e veias que me encarnavam na própria terra reanimada, areia transformada em mar, senti-me chão pisado por mim.

Pelos caminhos os meus próprios passos percorriam-me o corpo.
Sentia-os nos braços, pernas, subindo o peito e contornando a nuca, afundando-se nos cabelos. Passos com que pisava a própria pele.

Da surpresa ao encantamento fui fazendo o mapa de mim. Que caminhos os do flanco, a ondulação das costas, o pescoço e os mais finos, escondidos, da face. Os olhos. Outros íntimos que descobri em promontórios abertos ou apenas denunciados pela doçura do cheiro da esteva ao entardecer.

Dia após dia, caminhei por de mim. E à medida que preenchia essa geografia, que unia pontos em traços, traços em cor, assim recriava e antecipava o prazer da descoberta. Hoje pela rebentação da praia, no sulco das costas. Amanhã nas pequenas lagoas da maré baixa entre os dedos. Depois ainda descendo desde o queixo pelo peito, caminhos que se bifurcam até aos pés.

Ao fim do dia, na hora em que o céu se entrega ao horizonte, buscava o contorno dos olhos junto ao farol. Na luz que então se acendia podia ver os barcos iluminados a caminho do mar, e mais além, entre as estrelas até onde as partículas se diluíam na noite.

E quase sem pensar voltei a sentir a seda dos dedos. Fios que ainda me envolviam os braços. Que se afundavam no peito. Como um equilibrista, a 100 metros do chão, os pés imperceptivelmente pousados nos fios tensos, num milagre de funambulismo, desbravei o último caminho que me faltava.

2 Comments:

Blogger Ritinha said...

muito poético... gostei imenso, parabéns!

Beijinhos

9:29 da manhã  
Blogger poca said...

o caminho da descoberta... e o entusiasmo da novidade...

6:57 da tarde  

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