terça-feira, maio 09, 2006

Pássaros - 2


As mulheres nunca cessarão de me fazer sentir com pés de chumbo, invejando os pássaros.
J. Machado Vaz
Sou escravo da alegria do mar.

Nem sei como começou a minha prisão. Sei que nalguma altura fui contaminado deste desejo amante que se me colou à pele. Que se me alojou no fundo do corpo e me escraviza, eu que tanto prezo a liberdade. No início era uma maré de fogo que me visitava, um acesso febril de sal, algo indizível e desconhecido. Ondas a rebentarem sem aviso, o peito aberto à espera do próximo golpe. Desprezei todos os sinais, pensei que tudo estava na minha mão, marés, dizia, e o fogo salgado cada vez mais forte. Custavam-me as horas secas, o mar ria longe de mim, rezava “quero-te livre e meu” como se tal fosse possível. Chegava e cantava-me cores de outras praias, ouvia-o como se as marés dependessem dessas dádivas, era livre e meu, ao meu regaço chegavam estrelas e sereias. Mas era eu que era cada vez mais dele, tudo dava por esse abraço transparente, esse banquete de sal em fogo. Depois tudo se concentrava na concha que apertava na minha mão, à noite.

Prendemo-nos pelo que queremos, dizem. Pelo que gostamos. Eu digo pelo que amamos sem escolha, pelo que perdemos docemente o pé e nos afundamos, e nessa hora somos sal, e algas, e sal de novo. Somos pertença dos mares que sitiamos, em tantas noites de espera debaixo das ondas em que tecemos redes.

Hoje percorro praias.
Chamem-lhe destino, não sei, acho que não.
Destino, esse sempre gostei de o traçar na mão com a ponta de uma navalha. Desafio predestinações, caminhos traçados, foi nessa têmpera que fui criado.
Olho para cima, vejo pássaros que demandam outros mares.

Eu recolho sinais.
Conchas, cabelos de sereia, a luz do entardecer, a geometria da falésia, ventos sussurrantes ou violentos. A cada momento me ilumino com a promessa de um sorriso azul. Onda após onda. Ilumino-me ou espero. Onda após onda. Prisioneiro do indizível e desconhecido, feito de sal.