quinta-feira, maio 04, 2006

Pássaros


Saímos da terra dos vulcões no crescer da tarde.

O ar era um mosaico de luz e sombra, como uma paisagem que brilha depois da chuva. Mas sem o cheiro húmido da terra. Apenas o vento salgado no meio do mar, na lonjura da costa, nas aves rápidas, no som mudo das ondas que não quebram, peregrinas que correm inteiras pelos sete mares.

A dez milhas encontrámos os primeiros caçadores marinhos, rasgam a superfície numa poeira de espuma, são incontáveis e repentinos, quase lhes sinto o respirar veloz. O cabelo está molhado, imagino o lado submerso do espelho, as caçadas nessa pradaria ao som de cânticos febris, uma horda mais antiga que o tempo que podemos sonhar, o dos chefes guerreiros e as suas tribos.

Deixam atrás de si marcas no mar, desaparecem como surgiram, nómadas de destino incerto. Depois, de novo esse silêncio fundo, ondulante, azul. Tão terrívelmente puro que até o mais suave dos gestos parece quebrá-lo.

Olho para a Inês, pouco mais tem que dez anos. O medo inicial tinha-se dissolvido no brilho dos olhos. Na magia do nunca-visto. Visitantes na terra dos atlantes, o coração salta no peito, tanto que é impossível, quase absurdo, falar. Um entendimento que se faz por dentro da pele, nesse mesmo sangue que partilhamos, coisas do DNA e do calor do aconchego.

Os motores param.
Ondulamos debaixo do céu, suspensos de um momento que pressentimos chegar.
E eles chegaram.
Bem mais suaves que as tribos de caçadores, antes famílias que brincam num domingo à tarde, saltam à volta do barco, mergulham de novo, são inesperados e ao mesmo tempo contidos, como se nos mantivessem sempre à distância de um olhar, nem mais nem menos.

Mergulhámos para o outro lado do espelho.
E o mundo ficou azul.
Não o azul que conhecia, dos mergulhos à vista de terra. Mas um azul completo e sem relevo, sem um ponto onde ancorar o olhar.

E vi-os. Eram como nós, afinal.

Grandes e pequenos, crianças, com surpresas e dias de brincadeiras, gestos que protegem, olhares, sorrisos. Eu também, com a Inês pela minha mão, famílias entre famílias, nadávamos numa emoção incontida.
Primeiro olharam, curiosos, posso jurar que dentro desse olhar havia uma voz. Depois, como pássaros voaram à nossa volta, rodopiaram num abraço. E cantaram, numa voz que nunca vou esquecer, palavras numa língua desconhecida e transparente. Cantaram todo um mundo por segundos, canções de sereias e marinheiros, a cor dos sete mares, as lágrimas perdidas dos naufragados, as ilhas encantadas de onde nunca se parte. Canções do tempo do mar eterno, histórias para sempre perdidas de reinos desaparecidos.

A caminho de terra, na luz depois do sol, perguntei-lhe: Gostaste?
- Nunca me vou esquecer, pai. Nunca. E não tive medo, viste?
Eu também não me esqueço, Inês.
Meu pequeno pássaro sem medo.