quinta-feira, junho 08, 2006

As palavras


Havia sol lá fora, lembro-me, entrava em tiras pela janela, a luz recortada pelos estores. Mas o ar da sala era feito de um silêncio pardo, denso, uma bruma feita de desconhecido, mistérios obscuros, expectativa. Um mundo novo sem caminhos seguros, onde me tinham deixado à minha própria mercê, sem mapas, bússola, ou o cheiro quente da pele.

Agarrava-me à carteira como a uma jangada, ao toque familiar da madeira, a tudo o que fosse mais primitivo, os sentidos, o barulho dos carros, o sol recortado, vozes lá fora, cheio de uma solidão que tinha algo de fatal, de irremediável como o sol das cinco da tarde no deserto.

Abrimos então o livro, o instrumento novo que, diziam, nos ia guiar através desse continente. E eu sem saber sequer como funcionava, qual a maravilha que o fazia viver, de que forma se animava, quanto mais usá-lo como um descobridor de mundos. O primeiro gesto foi solene, e fácil, mais fácil até do que tinha imaginado. Lá estavam elas, as letras, e debaixo de cada uma, uma imagem, A de águia, B de burro, C de coelho, D de dado, e por aí adiante até ao U de urso, V de veado, X de xadrez, Z de Zebra. Ainda antes de as decorar já a águia tinha caçado o coelho, o urso jogava xadrez com o veado, a zebra era um burro de pijama.

Palavras.

Cresceram no assombro dos dias, nos encantamentos e dores, nas flores e feridas talhadas na pele. Ganharam cor, cheiro, sabor, todos os sentidos e ainda outro que é indizível mas que todos conhecem, algo que está por dentro do corpo. Ganharam essa textura para todo o sempre. E desde então, para mim, sol é o ar recortado à navalha, límpido, em carne viva, sobre o grande areal, Junho é a cor laranja nas vidraças da cidade, dor é um corredor branco com muitas portas, noite é o espaço entre as luzes, as estrelas, os sons, tarde é a areia fria com ondas lentas numa camisola de lã, chuva é o beijo adiado num caminho entre as árvores, riso é correr nu para o mar, solidão o ruído do comboio na tarde de domingo.

Palavras.

Tenho o meu próprio alfabeto, esse que foi crescendo comigo, um sentido transparente e íntimo. Sei falar outras línguas, ouço-as nas ruas, nos cafés, leio sinais e éditos, mas não são a minha, não me reconheço nelas, não são o meu falar. Nem preenchem o meu silêncio, não dão nome àquilo que não pronuncio. Na minha língua não existem “relações”, mas sim amigos e amores, amigos das horas nocturnas e do sol a pino, do vinho quente, das horas boas e más, amigos perdidos e achados, distantes e presentes. Amores fugazes e doces, amores perfeitos, amores sangrantes, animais, ternos e lentos, amores com azul ao fundo.

Tal como nesse dia, em que o ar era denso e desconhecido, atravesso continentes, novos países, oceanos, desertos. Abro solenemente os dias, uns fáceis, outros difíceis. Tenho mapas, desenho outros. Junto sentidos a palavras, o lilás dos jacarandás que se cruza com o amarelo das mimosas, o gin do fim da tarde, o sumo de laranja, o café de manhã, o cigarro na varanda, a noite amanhecida, a relva debaixo dos pés, a mão que me desenha o corpo. Outros há que não têm palavras, talvez um dia nasçam como um dialecto do novo mundo, talvez de noite ou ao amanhecer, certamente numa hora desabitada. Elevam-se do silêncio como a luz da madrugada, cheiram a azul, esteva, sal.

1 Comments:

Blogger joão said...

maome,

visita com brilho. que deixa presentes à soleira da porta.
casimiro de brito, que desconhecia completamente, um verdadeiro presente-surpresa. guardado na caixa dos tesouros.

tambem por isto, muito por isto, vale a pena ter começado o blog.
iluminações.

palavras.

deixo obrigado.
a forma mais simples e radical de estar reconhecido.

um abraço

2:35 da tarde  

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