segunda-feira, dezembro 25, 2006

Pequenos Milagres


No fim da noite soube que era afinal por isto que tinha passado estes dois dias de ebulição. No meio da parafrenália de tachos, temperos, cheiros, cores, vozes, muitas vozes por vezes dissonantes.

Nada do que esperamos é certo. Nada nos prepara para a visão do alto da montanha durante a subida. Pode ser o abismo do horizonte onde nascem os caminhos, mares sólidos ou encapelados, a trama verde e rugosa das florestas, o silêncio denso ou luminoso. Ou novas montanhas, rios, mais caminhos, sempre caminhos que parecem repetir-se numa ordenação cujo sentido escapa.

E por vezes, os pequenos milagres. Se é que milagres alguma vez são pequenos, talvez antes breves, duma suavidade que não avisa, que não grita.

Éramos todos à mesa.
As minhas filhas, irmão. Os sobrinhos, primos.
O meu pai, que enfrenta os pesadelos da velhice, da doença. A minha mãe que por vezes salta do riso à melancolia.
Não se viam há vinte anos, desde que as suas vidas tomaram rumos diferentes. Mas ontem jantaram juntos, se bem que em cadeiras um pouco separadas à volta da mesa. Mas abraçaram-se, e nesse abraço não houve mágoas, ressentimentos. Houve carinho, até, ou foi isso que eu vi, ou quis ver. Trocaram presentes.

Momentos de redenção.
Dizem que um belo morrer redime toda uma vida. Eu diga que a vida não é bela nem feia, ou é mesmo bela e feia, suave e terrível. Frágil, certamente, por isso há que por vezes trazê-la ao colo, aquecê-la entre as mãos, dar-lhe pequenos milagres ao adormecer




na hora de pôr a mesa, éramos cinco:
o meu pai, a minha mãe, as minhas irmãs
e eu. depois, a minha irmã mais velha
casou-se. depois, a minha irmã mais nova
casou-se. depois, o meu pai morreu. hoje,
na hora de pôr a mesa, somos cinco,
menos a minha irmã mais velha que está
na casa dela, menos a minha irmã mais
nova que está na casa dela, menos o meu
pai, menos a minha mãe viuva. cada um
deles é um lugar vazio nesta mesa onde
como sozinho. mas irão estar sempre aqui.
na hora de pôr a mesa, seremos sempre cinco.
enquanto um de nós estiver vivo, seremos
sempre cinco.
José Luis Peixoto