quinta-feira, abril 27, 2006

A jaula


Lá fora faz sol.
Não é mais que um sol
mas os homens olham-no
e depois cantam.

Eu não sei do sol.
Sei a melodia do anjo
e o sermão quente
do último vento.
Sei gritar até a aurora
quando a morte pousa nua
em minha sombra.

Choro debaixo do meu nome.
Aceno lenços na noite
e barcos sedentos de realidade
dançam comigo.
Oculto cravos
para escarnecer meus sonhos enfermos.

Lá fora faz sol.
Eu me visto de cinzas.


Alexandra Pizarnik

Os passos perdidos


Antes foi uma luz
na minha linguagem nascida
a poucos passos do amor.

Noite aberta. Noite presença.


Alejandra Pizarnik

A seda do teu olhar - 4



Na cidade de pontes e árvores é quase Dezembro.

A bruma nasce cinzenta cada dia nos parques, ainda antes do sol. Cresce primogénita e reclama as ruas, os espaços entre as árvores, debaixo das pontes, no mercado de Domingo junto ao rio. Apenas interrompida pela cor das flores, pinceladas em preparações festivas e no riso das crianças. A cidade das pontes e árvores vestiu-se em longos casacos de lã e passeia de bicicleta nos jardins, com elegantes árvores despidas, ordenadas em bosques.

Chegou pelo rio, primeiro um cheiro a esteva brava e seda. Logo após um vento morno, quase líquido, nuvem de calor derretendo-se na bruma.

Vislumbrou-se depois rente à água, vogando à deriva contra a corrente.
A ilha subia o rio até à cidade.
Como um navio de areia nadava, silenciosamente, braços derretendo o gelo. Um estranho navio com um farol por mastro, feito de praias, ondas e mar. Feito de pele, cabelos e sangue, olhos e pedras. Com velas de gaze e sol.

Parou no cais junto ao mercado e deitou-se no próprio rio. Estendeu até à margem uma mão onde se viam nitidamente dourados fios. Dedos que procuraram outros dedos pelas margens, ruas e casas, por entre os longos casacos de lã, as árvores e as pontes.

Ninguém no mercado a viu subir por esses dedos, despindo o casaco, depois pela mão, peça, por peça toda a sua roupa, pelo braço até se entender nua, olhando o céu, na praia do meu peito.

quarta-feira, abril 26, 2006

Desperta-me de noite


Desperta-me de noite
O teu desejo
Na vaga dos teus dedos
com que vergas
O sono em que me deito

É rede a tua lingua
Em tua teia
É vício as palavras
Com que falas


A trégua
A entrega
O disfarce

E lembras os meus ombros
Docemente
Na dobra do lençol que desfazes

Desperta-me de noite
Com o teu corpo
Tiras-me do sono
Onde resvalo

E eu pouco a pouco
Vou repelindo a noite
E tu dentro de mim
Vai descobrindo vales.


Maria Teresa Horta

Naus


Pode acontecer a qualquer hora, hoje foi neste entardecer de quase Verão. Em que a mudança súbita do ar me deixa sem rumo no sentir, como se a pele se tornasse mais porosa e por ela entrasse todo o mundo numa enxurrada, tantas coisas que nem sei nomear. Coisas solares e lunares, cidades de sol e de horizontes, sabores de corpo no atravessar da noite, vozes sussurradas, lágrimas, silêncio, esperança, o sabor dos morangos, a estranha mania de olhar o céu ou de molhar os beijos, de conseguir chorar a tristeza num abraço ou no silêncio.

A vida é frágil.
É uma nau de vidro à beira do abismo, mas é a nossa única nau. Na transparência profunda do porão transportamos carícias e desenganos, encantamentos e feridas. Todas essas cores, traços que dão peso e asas., com que alcançamos novas paragens. Novos mapas, novas luas, novas cidades que vamos amando ainda mesmo antes de conhecer.

sexta-feira, abril 21, 2006

O meu corpo é de ti feito - 3



Primeiro foi a areia.

Numa breve ondulação as pegadas pareciam mover-se, pequeníssimas dunas transformadas em ondas rebentavam a meus pés numa espuma de pó, transparente, uma suave carícia quase imperceptível. Como se a terra acordasse, num suspiro lento. Depois foi o peso do corpo que senti, por dentro da areia, unido à areia, como uma ponte que se refazia. Fios antigos, nervos e veias que me encarnavam na própria terra reanimada, areia transformada em mar, senti-me chão pisado por mim.

Pelos caminhos os meus próprios passos percorriam-me o corpo.
Sentia-os nos braços, pernas, subindo o peito e contornando a nuca, afundando-se nos cabelos. Passos com que pisava a própria pele.

Da surpresa ao encantamento fui fazendo o mapa de mim. Que caminhos os do flanco, a ondulação das costas, o pescoço e os mais finos, escondidos, da face. Os olhos. Outros íntimos que descobri em promontórios abertos ou apenas denunciados pela doçura do cheiro da esteva ao entardecer.

Dia após dia, caminhei por de mim. E à medida que preenchia essa geografia, que unia pontos em traços, traços em cor, assim recriava e antecipava o prazer da descoberta. Hoje pela rebentação da praia, no sulco das costas. Amanhã nas pequenas lagoas da maré baixa entre os dedos. Depois ainda descendo desde o queixo pelo peito, caminhos que se bifurcam até aos pés.

Ao fim do dia, na hora em que o céu se entrega ao horizonte, buscava o contorno dos olhos junto ao farol. Na luz que então se acendia podia ver os barcos iluminados a caminho do mar, e mais além, entre as estrelas até onde as partículas se diluíam na noite.

E quase sem pensar voltei a sentir a seda dos dedos. Fios que ainda me envolviam os braços. Que se afundavam no peito. Como um equilibrista, a 100 metros do chão, os pés imperceptivelmente pousados nos fios tensos, num milagre de funambulismo, desbravei o último caminho que me faltava.

quinta-feira, abril 20, 2006

Aguarela


Não me interessa de que cor vai nascer o dia.

Vou estendê-lo à minha frente como um pano cru, uma tela por pintar. Com as minhas melhores tintas, em traços rápidos e limpos vou banhá-lo de azul, depois vermelho, umas pitadas de amarelo cintilante, um ou outro castanho que lhe dê alguma textura e peso.

A caminho do mar dos corsários, de calção e jangada, não me vou esquecer da música, do vinho, do teu chapéu preferido, do caderno, do balde, dos castelos na areia, de guardar o sal na pele.

Tal como na aguarela, os dias de mar pintam-se rapidamente, certeiros mesmo até na incerteza.

terça-feira, abril 18, 2006

A lua é minha aliada - 2


Durante dias percorri caminhos conhecidos na areia. Descalço, para melhor sentir a carícia da terra que sentia estranha. O labirinto das passadeiras, o calor ou o frio guardados em cada camada das pegadas como estratos da história dos dias passados, uma arqueologia do sentir usando só a pele como instrumento. Vagueei num exercício de memória, duma memória antiga em que os dias tinham sal, o sabor dos gelados, o mergulho suado ao fim do dia de criança-argonauta. Repeti gestos como se de uma alquimia se tratasse, a construção de um sentir pelos ingredientes da pele, dos olhos, do cheiro. Procurar, procurar esse sentido antigo para melhor esquecer as alamedas e miradouros amarelos e azuis da cidade, guardados em olhos ausentes.

Em busca das pegadas deixadas no mar percorri a rebentação, ao longo da praia. Afundei os pés na espuma, nesse território entre a terra e o oceano em busca de um porto de abrigo ainda desconhecido.

Recolhi pedras e conchas no meu no bolso, só a elas me quis agarrar. Caminhei entre o voo das gaivotas, pelo paredão do molhe, uma estaca cravada no Sul, no peito, um prego cravado na cabeça como me disseram depois, mas tudo isso só depois. Foi numa dessas tardes que se abriu uma brecha na obstinação alquímica. Talvez por um vento repentino, uma luz, uma voz vagamente conhecida. Foi então, nesse ocaso de vento que tentei em vão soltar os fios de seda ainda aprisionados no peito, e me puxaram, e me rasgaram a carne e eu sem saber a que elemento pertencia.

Esperei noite após noite o cansaço do corpo, da alma não esperava sossego. E adormecia náufrago pela madrugada.

Um dia de tanto andar não cheguei a casa. Deitei-me debaixo da lua, tapado pela areia, ao sentir que o sono me vencia a meio caminho, essa benesse sempre ansiada.

Novamente sonhei.
Numa jangada, com velas feitas de fina gaze, o vento encontrava enfim nós e fios para soprar. Navegava num arquipélago de areia, um nocturno mar de tranquilidade.
Deitado na jangada via um farol feito de luas, uma após outra percorriam o céu guiando os barcos iluminados. Ouvi canções que do fundo da memória, canções de marinheiros e argonautas. Com risos e aves nocturnas que enchiam o céu.

Nos meus olhos iluminavam-se lágrimas que de imediato subiam para o firmamento, estrelas de mim mesmo, uma chuva brilhante que desafiava a gravidade. E enquanto chorava senti os longos braços do manto lunar, um aconchego feliz, intimo.

Durante toda a noite naveguei, sei, como quem sabe o que ainda não viu nem ouviu, coberto de areia, no arquipélago da lua. Debaixo de um céu de lágrimas luminosas, canções de marinheiros e risos de aves nocturnas. Numa jangada com velas de gaze.

domingo, abril 16, 2006

DNA-2


Hoje fazes 18 anos.

Podia falar-te do teu choro, do teu cheiro, do teu clarão. Das noites dormidas e acordadas, das febres, das primeiras palavras, primeiros gestos, primeiros traços. O riso com que encheste a casa, com que me encheste, e eu sem saber se seria capaz de ser teu pai. De como o coração cresceu desmesuradamente, quando eu já o pensava incapaz de albergar mais qualquer coisa. Podia falar-te de como te ajeitavas no meu colo, de como te retorcias e abraçavas, da tua voz de falsete. Do teu primeiro cavalo que nasceu de tanta angustia, e também de tanta esperança. Dos primeiros medos e tristezas que partilhaste comigo.

Podia falar de tudo isso.

Mas prefiro olhar para a vida que se desdobra no teu olhar, no teu querer, nesta aventura onde enches agora as tuas velas, lanças as asas num imenso azul.

Hoje é Páscoa, mas foste hoje a minha Páscoa. Tu e a princesa palito-sem-pés-no-chão. Sopraste as tuas velas, soprei-te como um dente-de-leão que se lança no ar. Se alguma vez puder dizer que te dei alguma coisa, gostava que fosse isso. Esse golpe de asa que tem quem sabe que a vida é uma aventura.

terça-feira, abril 11, 2006

As coisas mais terríveis acontecem em dias de sol ou noites de luar - 1


As coisas mais terríveis acontecem em dias de sol ou noites de luar.

Como a estranheza de estar ali, naquele momento, numa hora perdida das outras horas, um tempo desgarrado. No mar nocturno o barco é uma nave iluminada, entre ar e água traça uma estrada de luz amarela. Nos bancos pintados com cores de verão aconchegam-se agora mulheres e crianças, argonautas dos mares de Outubro. Trazem alcofas, os livros da escola, histórias de terra firme, são estranhamente louros, ou ruivos. Não sou um deles, sei, por isso estou entre a luz e a noite, no banco da frente onde o ar frio traz sal e frio, agasalho-me contra a noite que trago no peito.


- São só dois meses. Eu escrevo – prometo.
Mas os olhos não prometiam, resvalando para longe. Como um rio ruidoso que lhe atravessasse a alma, as terríveis águas das despedidas. Deixam pontes de papel atrás de si, dissolvendo-se nas primeiras enxurradas.
Enxurradas de Outubro naquele dia de Agosto.

Acredito em tudo o que me mentes.

Sorri: - Eu sei. Também escrevo, nem preciso prometer.
E as mãos caíram inanimadas, de desencanto. Procuraram por instantes agarrar transparentes fios. Seda dourada que sentia sempre que os nossos dedos se trocavam, subindo em espirais pelos braços, até perfurarem o peito.
Depois guardei-as nos bolsos, doridas de ausência.

Dias passaram. Mas o tempo nem sempre cura. Por vezes seca. Outras vezes vai ardendo cada vez mais. Ardendo pelo Setembro que tenta arrefecer a luz, em ausência. Ardendo pelas horas lunares, intermináveis. Ardendo pelos passos andados sem procurar, com a gola do casaco subida, em sinal de perdição.

Chegaram cartas. De uma cidade de pontes e jardins de relva húmida. De árvores elegantemente despidas em bosques ordenados. Flores de Inverno em preparações festivas. Notícias de passeios agasalhados no mercado de domingo, na margem do rio.
- Gosto desta cidade. Não me importava de morar aqui. Para sempre.

Foi o “sempre” que me empurrou para o Farol: - se tiver que ser para sempre prefiro estar aqui. E arranquei um pedaço de tempo inabitado ao resto do tempo, um deserto de horas entre mim e o mundo. Para a terra de outonos mais esquecidos que conhecia.
Para apanhar mesmo a tempo o último barco, que já de noite transporta as almas anfíbias que moram entre a terra e o mar.

Debaixo da luz amarela que embalava o ruído do motor, senti pela primeira vez a fria carícia da noite sem memórias, a frescura da noite marítima a materializar-se no meu peito. E pensei com esperança que a clemência do esquecimento se apoderava de mim. Num entorpecimento que desafiava o coração desengonçado, adormeci encolhido no fundo do banco de madeira pintado de azul.

sexta-feira, abril 07, 2006

E porque amanhã é outro dia



MATTINA


M'illumino
d'immenso



Giuseppe Ungaretti

quinta-feira, abril 06, 2006

O tempo dos ciganos


A mim não me interessa nada como o mundo se organiza: interessa-me o modo como me estou organizando. Páro a escutar que chove; ofereço o olhar a cada entardecer e sou feliz, como ontem fui, ao aprender que as flores da cerejeira alcançam o máximo da sua brancura um instante antes de cair e morrer.
Sou um poeta. Um fulano qualquer que caminha ligeiramente levantado da terra e que, de vez em quando, cai, estatelando os tacões e enchendo-se de infelicidade.


Tonino Guerra

O contador de histórias


O meu avô contava-me histórias intermináveis.
Era um homem grande – para mim o maior de todos – cabelo branco, brilhante, sempre muito curto, pequeno bigode também branco.
Todo ele era volume, espaço. Ocupava a sala com o seu tamanho e a sua voz.
Homem de rigor, casaco, colete, gravata, que compunha em longas horas – o tempo tambem era dele.

Mas destes rigores surgiam histórias. Fantásticas, sempre diferentes, como se navegasse à vista no mundo dos sonhos. Passava de fabulosas explorações na Africa profunda, com tribos enfurecidas, feras e montanhas envolvidas na bruma de florestas para loucos navios de piratas que sulcavam mares, ávidos de ouro, rum e aventura.

Ouvia-o extasiado.
E, geralmente na melhor parte, a meio de uma fuga desesperada dos temíveis pigmeus ou à beira de um naufrágio – adormecia. Adormecia e ressonava ruidosamente, como se a sua alma se volatizasse no sonho. Acordava-o e ele ainda balbuciava uma lança perdida, um rugido de leão, logo depois nova ressonadela – nessa altura sabia que a história tinha acabado.
Nunca ouvi dele uma história que tivesse um fim. Fim mesmo, como nas outras histórias. Eram como fatias de um filme que se apanha a meio e que um corte de luz impede que se conheça o final.

Muitas vezes passeei com ele. Ao longo de muitos anos.
Este é talvez o nosso primeiro passeio.

Havia um jardim em Lisboa. Com árvores, relvados, flores. Caminhos na sombra e sol nas clareiras. Habitado por pavões e cegonhas.
Lembro-me que passeava com o meu avô. O homem rigoroso que me contava histórias de sonho ia animando cada recanto. Palavras vivas, entornavam poeira encantada nos caminhos do jardim.
Chegámos então a um lago com margens de relva. No meio do lago, uma espécie de ilha cujo acesso era feito por uma ponte. De cada lado da ponte, um pilar, sobre cada pilar um cavalo de pedra. Olhavam-me enquanto cruzava a ponte, cabeça inclinada e pés em fibra de pedra, prontos a saltar.

Do outro lado, na ilha, um porto de abrigo para barcos de madeira. Um café. E uma enorme montra de vidro que desafiava a minha curiosidade.
Ao colo do meu avô vi o que estava lá dentro – não queria acreditar.
Os habitantes das suas histórias africanas viviam dentro daquela caixa de vidro. Dezenas de macacos, palmeiras, lagos, florestas. Mas agora sem vestígios das guerras tribais.
Estavam vestidos, suspensos no movimento, cada um deles empunhando um instrumento musical. Que um golpe de magia vindo do bolso do meu avô pôs em movimento. Súbitamente, toda aquela orquestra tocou, num frenesim de macacos musicais. A floresta dançava ao vento dentro de uma caixa de vidro.

Nesse dia tocaram 3, 4 vezes…como que para me assegurar que não era uma magia do acaso. Que o meu avô realmente comandava essas criaturas, capitão do sonho.

Quando cruzei a ponte de volta, olhei para os cavalos de pedra. Pedi: Posso montar um deles? Perguntou-me? Qual queres?
Parecia-me injusto escolher. Olhavam-me ambos por detrás das pestanas de pedra, um castanho com a crina dourada, outro com manchas de todas as cores. Escolhi o castanho, que nesse momento passou a ser o único.
No dia em que passeei com o meu avô pela primeira vez da minha memória conheci os macacos musicos e montei o meu cavalo castanho com crina dourada.

Acompanhei-o na sua vida e na sua morte. Morreu em casa, como sempre desejou. Montamos vigia no seu leito, quase uma enfermaria, nos meses que precederam a sua morte. Num ano de mortes e de nascimentos.

O meu avô que não era pescador.
Com ele joguei cartas em noites de Setembro.
Por ele até fui caçador.
Falava-me de gente que trago sem saber no sangue, lutadores, homens rigorosos, que enfrentaram destinos e governos, que conheceram o exílio.

Deu-me o primeiro cavalo. Castanho com crina dourada.
A última vez que passei no Campo Grande ainda lá estava.

terça-feira, abril 04, 2006

Abraço



Não gosto tanto
de livros
como Mallarmé
parece que gostava
eu não sou um livro
e quando me dizem
gosto muito dos seus livros
gostava de poder dizer
como o poeta Cesariny
olha
eu gostava
é que tu gostasses de mim
os livros não são feitos
de carne e osso
e quando tenhovontade de chorar
abrir um livro
não me chega
preciso de um abraço
mas graças a Deus
o mundo não é um livro
e o acaso não existe
no entanto gosto muito
de livros
e acredito na Ressurreição
dos livros
e acredito que no Céu
haja bibliotecas
e se possa ler e escrever

Adília Lopes

DNA


“Vamos até à praia?” Perguntou. “É o que mais desejo.”
Fomos.
Não era dia nem noite, uma hora perdida de outras horas. Um tempo a descompasso, urgente, como os figos que se colhem de manhã. Como o ruído do ar nos cabelos ou o olhar sem palavras, completo, que enche o peito. O silêncio com que se cumprem as promessas do coração.

A areia estava fria e o ar quente. Caminhámos pela falésia com a certeza dos animais, éramos gente que descia até ao mar naquela hora perdida das outras. Não sei bem porquê, talvez dos meus olhos, talvez do ruído da areia debaixo dos pés, do cheiro vegetal que chegava de terra, do estar nesse tempo roubado, do som repentino dos risos junto ao mar, talvez disso, de nos sentarmos debaixo da lã agasalhados no próprio corpo, talvez, sim, mas lembro-me bem, não imaginei.

As palavras rebentavam na praia, uma a uma, límpidas. Em espuma feita de cor, estrelas, luas, cavaleiros e princesas. As palavras eram a luz dessa hora. Mas não eram como as palavras normais, daquelas que dizemos para pedir um café, para dizer boa noite, bom dia, então. As palavras eram luzes, fosforescências na espuma dessa hora, iluminavam o cabelo como pirilampos, o sorriso, o vento nos cabelos, o ruído da areia.

O ar estava quente e a areia fria.
Sei que te levei à praia nessa hora, que te fizeste a luz da espuma como eu também antes me tinha sentido luz. Que riste nesse teu tempo de quase-já-não-criança à beira mar, que trazes em ti o poder de transformar a espuma em estrelas, de iluminar os cabelos como pirilampos. De deixar chegar a noite sem medo. Mesmo quando eu já for uma das estrelas que iluminas com as tuas palavras.

E promete-me.
Leva-me então ao mar, nesse tempo nem dia nem noite. Serei estrela ou sol. Serei de novo, onda após onda, no ruído da areia, no voo repentino ou calmo das gaivotas. Em todas as horas em que hei-de reclamar as que não vivi nesse mar.