quarta-feira, fevereiro 22, 2006

Coração andaluz 2


Este poema é para ti,
Como um jardim que a brisa visitou
Sobre o qual repousou o orvalho da noite, até que o ataviou de flores.
Do teu nome fiz-lhe uma veste de ouro.
Com o teu louvor derramei o melhor almíscar.
Ibn 'Ammâr, Silves, séc. XI

Coração andaluz



"Meu coração tornou-se capaz de assumir qualquer forma;

ele é um pasto para gazelas e um convento para monges cristãos, um templo para ídolos e a Caaba dos peregrinos, as tábuas da Torah e o livro do Corão.

Eu sigo a religião do Amor: qualquer que seja o caminho que o Amor toma, esta é a minha religião e a minha fé."


Ibn 'Arabi, sécs. XII-XIII, natural de Múrcia

terça-feira, fevereiro 21, 2006

Desenho num papel


Há uns anitos atrás – não digo quantos, apenas que na altura ainda havia uns retratos do Sr. Almirante pendurados na sala de aula - passava eu tardes de sofrimento atroz a espreitar a luz que escorria pelo céu e talvez uma presença no 1º esquerdo que pudesse aliviar o meu tormento. No turbilhão hormonal que então me varria, erguia a solidão como uma bandeira, vibrava no ar iluminado ou nos bancos húmidos dos jardins, sonhava beijos únicos e a geografia de uma pele que desconhecia. Lia Daniel Filipe e Nuno Júdice, a simples presença dos livros no meu bolso era como um bilhete de identidade, uma senha e santo que me erguia por cima dos dias cinzentos e do uniforme do Sr. Almirante. Bebia as primeiras bicas, o SG filtro, ouvia sons que chegavam do outro lado do mar, aventurava-me de lápis em punho nas primeiras escritas, desenhava caminhos próprios na cidade, a tarde era a minha casa, íntima e infinita como mais tarde li em Borges.

Nem me lembro bem como conheci o Zé. Pode ter sido por acaso, uma frase solta, uma revolução na aula de OPAN, um cigarro partilhado. Coisas. Nessa altura descobri que os livros do Daniel Filipe e do Nuno Júdice habitavam outros bolsos para além do meu, que havia outro desbravadores de caminhos e bancos húmidos de jardins. As tardes continuaram íntimas e infinitas, e prolongavam-se pelas manhãs, pelos intervalos e furos no liceu, entre bicas na Biarritz e palavras defumadas a SG Filtro. As palavras tornaram-se mesmo as nossas melhores e únicas armas, o contorno visível da alma. Livros, escritos, levantamentos armados, amores mais imaginados que vividos, músicas deste e doutro lado do mar, heróis que povoavam as conversas.

Havia depois a casa na Costa. Ou as sucessivas casas na Costa que colonizámos, o paredão com mar ao fundo, a música feita pelas próprias mão, a aventura da boleia na Praça de Espanha, as fugas na Gilera. A Costa era noite e dia, Inverno e Verão, uma espécie de casa na árvore à beira do mar, com língua e bandeira próprias. E tinha uma cor, o ar tinha essa cor que atravessava o rio e se reflectia nos vidro da cidade, e me desassossegava até não resistir mais e me pôr a caminho desse mar.

Pouco depois chegaram os amores com cheiro de pele, primeiras namoradas, primeiros beijos, a descoberta da geografia do corpo. Havia um sabor a sal e a café, a cigarros e palavras vadias. Medos vencidos e invencidos, o tempo num arrepio, quartos onde gravei juras de amor, onde deixei pedaços de mim, de onde trouxe muito do que sou hoje. Sei que de todas as vezes amei profundamente, e que os amores são intemporais embora acabem. Ficam-nos debaixo da pele para todo o sempre, umas vezes como uma dor, outras numa carícia.
Chegámos a amar a mesma mulher, talvez seja também isso que partilhamos, essa molécula que vive debaixo da pele de cada um de nós.

Mais tarde houve filhos, exílios, Bruxelas e Hamburgo, corredores de hospitais e serviços a desoras. Casamentos, divórcios e alguns funerais. Dias e noites bem e mal dormidas, angustias, alegrias, cores com que se pintam os dias. Reencontros à beira do naufrágio junto ao Tejo, bebedeiras que deixam marca. Brindar o nascer de uma nova era na açoteia da Costa, debaixo do fogo de artifício, com Don Perignon.

Este é para ti.
Foi-me oferecido pela Lisa. A falésia junto à costa com mar ao fundo, desenhada em papel de embrulho. Se reparares bem, adivinhas umas letras esbatidas, estampadas no papel, o nome do café onde ela comprou bolos, antes de o pintar.
BIARRITZ.

quarta-feira, fevereiro 15, 2006

Alguem a ver o mar


Escrever organiza-me, costumo dizer.
Na verdade, nem sei se a ideia é mesmo essa. A escrever vou-me descobrindo, e descobrindo estados de alma. Nem sempre os que descrevo, mas os que vivo escrevendo.

Palavra por palavra, ilumino sombras, o meu corpo arrumado ou desarrumado, os meus dedos certeiros ou hesitantes. As minhas ruínas e os meus jardins, as marcas do corpo, tatuagens, beijos e tormentos. Olho pela janela por onde entra o ar lunar, o ruído dos carros ao fundo, escrevo, há uma cantora checa que canta bossa nova, um cigarro a meio, uma vida suspensa, um cheiro a maresia.

E mais fundo, debaixo da terceira estação da alma, surge o mar. Quase doloroso, no limite da carícia, a carícia extrema. Há espuma que forma letras, canções de marear, a luxúria das ondas, noites marcadas na pele a sangue, o riso dos amigos, o sussurro dos beijos, o descobrir o sabor da amante, as horas a descompasso. Árvores no Inverno, a relva molhada, o caminho entre as dunas, a chuva, o tremer antes de chegar à boca, à pele, ao enlaçar dos dedos, à espera. O chá em Colares, o pinhal, a falésia. Um barco que atravessa comigo o rio, Porto Brandão, as luzes da ponte, o cheiro a viagem, a luz vermelha do sol nos vidros. A cantora checa, o ar entre as estrelas, o recorte da noite, jornais, café.

Levanto a gola do casaco, tenho sal nos lábios e no cabelo, não espero nem tenho saudade, estou neste momento roubado ao tempo, sou os meus jardins e as minhas ruínas, sou o gosto do azul, o vento na cara, sou alguém que vê o mar.

terça-feira, fevereiro 14, 2006

La carencia


Yo no sé de pajaros,
no conozco la historia del fuego.
Pero creo que mi soledad debería tener alas.
Alejandra Pizarnik

domingo, fevereiro 12, 2006

O ar mudou...


Chega pelo respiradouro que une este bunker ao resto do mundo. O ar traz uma cor diferente, diz “cheguei, consegues ver-me, sentir-me?”, e é como uma pequena ebulição do sangue. O ar está diferente, traz um gérmen de calor que se insinua lá no fundo. Há sol e sombras, cheiro a relva, quase maresia.
Será que de tanto querer imagino este caminho entre as arvores, aspiro por frescura em pleno Inverno?

As minhas tulipas rebentaram. Todas as manhãs as embalo, as amadureço no olhar, uma espera tranquila enquanto bebo o café da manhã, na varanda. Alimentar os gatos, cheiro a café, sumo de laranja, olhar Ferragudo do outro lado, a primeira conversa com as filhas antes da escola, gestos com que me contruo.

Jardins que cuido, e por vezes descuido, com carreiros suaves onde apenas soa a gravilha debaixo dos pés, a relva fresca e picante nos pés descalços, com arbustos densos, indomáveis, sol e sombra., vozes, gestos, jogos florais.

sexta-feira, fevereiro 10, 2006

Malaca


Fomos por Malaca.

Não a dos vice-reis e sultões, a de Afonso de Albuquerque, onde chegavam texteis da India, sedas e cerâmicas da China, cravo das Molucas, noz-moscada de Banda, papel de arroz de Samatra, cânfora do Brunei, madeira de Sândalo de Timor, pau-santo, bemjoim, chifres de Rinoceronte, marfim, pérolas, carpetes, adagas, batiques de Java. .. mercadores árabes do Cairo, Meca, Adem, Ormuz e da África Oriental com as embarcações carregadas de armas, tapeçarias, talheres de cobre, ópio, água de rosas, estoraques e incenso. Corante azul de Coramandel. Juncos chineses com seda em bruto para vestidos brocados em relevo, drogas aromáticas, cornalina e marfim.

Esta outra Malaca é à beira-tejo.
Também de especiarias e sedas, aromas que se misturam na cidade. Cacilheiros em vez de juncos, comerciantes e talvez também piratas.

Um dos sultões chama-se Miguel.
Português dos orientes, desembainha crepes vietnamitas, caril verde tailandês, saladas malaias, cremes de manga. Bate-se bem, galhardamente. Mesmo quando não vence todas as batalhas, que nem mesmo os melhores Sultões tudo podem vencer.

Deixamos promessas, abraços, trouxemos especiarias, sedas, sorrisos.

segunda-feira, fevereiro 06, 2006

Ciganos e cabarets

Embora leigo e diletante, a Europa Central sempre exerceu um fascínio sobre mim. Sei que nunca foste a Budapest. Eu fui. Se te puder mandar algumas impressões, tenta recolher a colina do palácio, onde não entrei, mas cuja presença basta para impor – digo impor porque é uma presença impositiva, incontornável, de uma corte imperial, majestática. Dos parques que a circundam, quase bosques, o funicular, a ponte das correntes, o palácio Gresham, notória companhia de seguros, iluminado por vitrais e candelabros, onde se respira um ar de espiões vindos do frio…as termas do Gellert, onde se continua a discutir futebol, o grande Pushkas, assuntos domésticos e outros intemporais, dores de costas, poemas, a língua magiar ondulante entre os vapores e os azulejos. Também um ar de guerra, coisa que sempre desconhecemos neste cantinho, mas guerra de mão cheia, massacres de milhões, genocídios, terra queimada. E o Danúbio, donde chegam hoje os turistas alemães, mas por onde gostaria de ter navegado com esse tal Maltese, filho incerto de mãe gibraltina e pai da Cornualha.

Há alguns anos fui a Berlim pela primeira vez, de comboio.
Atravessei os campos num estreito corredor de arame farpado, cheguei a uma cidade com construções dos anos 50, ruínas, e no entanto uma vibração que ameaçava a todo o momento parir algo maior do que se via. Havia ainda muro, na altura, embora repassado a todo o momento por turistas, soldados americanos de folga, e eu, está claro. A sensação era que tudo mudava ou estava para mudar, a cidade era uma dançarina de cabaret, que veste e despe os fatos de cena, em progressão até ao gran finale.
Mas de tudo o que me surpreendeu e fascinou – para além das visitas aos locais da memória e do imaginário, das praças de Berlim-Leste, as lojas do povo, a torre da televisão, Check-Point Charlie, Pergamonmuseum, o câmbio de rua e os parques banhados por um calor de Verão em Maio – o que lembro é da existência não física de uma cidade.
Coisas do Major Alvega, podem dizer.
Talvez.

Mas para mim Berlim sempre foi a capital dessa Alemanha da minha memória. Uma grande cidade, que foi ocupada pelos inquestionáveis assassinos, mas também onde um dia existiram os palácios reais, os imperadores, Beau-Séjour. A estátua de Nefertitii. A voz de Marlene Dietrich, Lilli Marlene, um anjo azul, Bertold Brecht, notal melancólicas e grandiosas.
Alguns palácios ainda lá estão, Beau-Séjour, de que se salvam principalmente os jardins. Outros existem em maquetes, quase escondidas.
E no entanto existiram.

História sobre história, gente sobre gente, em camadas de pó sedimentar.

Budapest e Berlim.
A cantora de cabaret e a cigana de sangue.

quarta-feira, fevereiro 01, 2006

Ontem em casa

Lembro-me como se fosse hoje. Lembro-me com cada centímetro de pele, uma memória orgânica, animal.

Noites de há muitos anos.
Na casa que escurecia, enterrado na cama, enfrentava medos e desalinhos do dia que passava. Debaixo da noite, debaixo dos lençóis, reinventava a minha aventura privada, intima. No meio da neve, debaixo de peles, atravessava a intempérie branca. Ouvia o barulho dos cães, o sussurro do manto nevado, os estalidos das árvores à minha passagem. Outras vezes náufrago ou navegante solitário, adormecia enroscado no convés, entre a maravilha e o assombro do mar à minha volta, agasalhava-me no céu, estrelas, gritos de gaivotas.
Quanto mais agreste era o mundo que me rodeava, e que recriava, maior a sensação de imperturbável paz, de perfeita harmonia, recolhido e aquecido a bafo entre mãos rugosas e firmes.
O mundo caía e eu enfrentava essa desordem com gestos simples e duradouros, sombra e luz de uma música que só eu ouvia.

A memória tem destas coisas, orgânicas, sedimentares.
Acabei de ler ontem ALMA do Manuel Alegre.

Num dos últimos capítulos conta-nos como a sua família esperava por alguém que os viria, talvez, prender, levar para algum local indizível de onde quase nunca se regressa. Uma espera tranquila e tensa, rodeada dos gestos simples e inequívocos que são o reduto da alma.

Ontem, em casa, lia e à minha volta dormiam as filhas, novelos de lã, os gatos ao borralho, dedos que percorrem as páginas de um livro. O cheiro da noite, um grito de gaivota, um sussurro de neve.
Caminhantes num deserto de neve, recolhidos na nossa jangada. Impenetráveis e tranquilamente decididos, como a eternidade.

Sombra e luz de uma música que só eu ouvia.