segunda-feira, maio 29, 2006

Traço comum


descalço-me de sombras para chegar a ti
as linhas do meu rosto são claríssimas
nelas não vês o velho, a criança, o adulto
vês apenas o traço comum
que é onde eu procuro a tua mão
na transparência da minha palavra inteira


Vasco Gato

segunda-feira, maio 22, 2006

Sábado na avenida


Sempre era verdade. Os jacarandás já acordaram na tua cidade. O primeiro lilás.

Sei porque subi a avenida até à igreja, encantei-me com a transparência da água do lago, ao sol de sábado. Lembro-me que dantes tinha peixes, em miúdo ia dar-lhes pão enquanto secretamente sonhava em pescá-los. Também das noites em que atrasava o andar para chegar a casa à hora em que se acendia a luz no 1º esquerdo, nessa altura desenhava o contorno nocturno das árvores, sentava-me na escadaria, olhava vezes sem conta para o relógio.

Depois o café na Biarritz.. Vi-te? Não sei. Tantas vezes procurei ler por detrás da transparência da pele, sempre sinais, fosforescências, um gesto talhado a meio pela emoção. De repente o mundo era o sol a romper o frio, bebíamos sumo de laranja e pão com manteiga, os minutos eram imensos e demasiadamente curtos para tudo o que ainda nem sabia como pôr nas palavras, nos gestos.

E quase sem saber cheguei à casa do poeta. Aquele homem de cabelos brancos que percorria a varanda em frente à minha. “É o poeta”, diziam-me, e eu chamava um anjo da guarda que o protegesse enquanto andava sozinho, em frente à minha varanda, e fazia palavras com asas que me defendiam da escuridão como um pára-raios.

Agora aninho-me na noite, com os meus gatos.
Trago na mão um punhado de ar azul, lilás. Algumas palavras com asas que consegui encontrar, esquecidas junto à casa. A cor do lago da igreja. O sabor da tua pele nos meus dedos.

quinta-feira, maio 18, 2006

Flor líquida


Chega a noite e com ela todos os fragmentos.

O som dos carros ao longe, um cão, o espaço entre as estrelas, o cheiro da terra, luzes na escuridão, o último cigarro, o dia que levamos para o travesseiro.

Há uma alquimia na noite, é o cadinho onde se fundem cores e sentires, uma saudade e um tremor, o olho de jade e o sangue virgem. O pão que fermenta na cozinha. O cheiro do jasmim na varanda.

E depois vem esta vontade de fazer crescer uma flor no corpo líquido, de ser guardador de pássaros, de fazer desenhos na tua pele, de te despentear sem pudor. De voltar a mergulhar, de acordar numa praia e correr nu para o mar. De me despedir das traineiras no molhe a ansiar pelo teu perfume.
Como se fosse a única verdade possível.

terça-feira, maio 16, 2006

Aos amigos


Amo devagar os amigos que são tristes com cinco dedos de cada lado.
Os amigos que enlouquecem e estão sentados, fechando os olhos,
com os livros atrás a arder para toda a eternidade.
Não os chamo, e eles voltam-se profundamente
dentro do fogo.
- Temos um talento doloroso e obscuro.
Construimos um lugar de silêncio.
De paixão.


Herberto Hélder

segunda-feira, maio 15, 2006

O mar da minha rua



Gosto deste mar, bem no fim da minha rua.

De tarde, desço até à praia pelo caminho da falésia, aquele que tem chorões e piteiras, ao som das cigarras. Quando sinto o primeiro vento no cabelo sei que já me viste, sei que estás aí mesmo sem te ver. Porque o mar é o mesmo, de qualquer parte que o olhemos, o teu mar também é este que tenho a meus pés, onde mergulho. Reconforta-me saber que partilhamos nem que seja o mar.

Hoje fui surpreendido pelos jacarandás, o ar é quente e lilás. Sei que também pintam a tua cidade, conheço essa irmandade misteriosa que desperta sem sinal combinado. Vão encher Junho de flores, sei, vais podes vê-las nas avenidas, nos jardins.
Dia após dia deixo o corpo na praia.
Uma voz lilás.
Como um farol, alguma coisa que te guie os passos.

quinta-feira, maio 11, 2006

Quando chegares


Quase desenho o contorno da tua voz na espuma, no som fundo das ondas. Algo que nasce do mais abissal e se eleva, invade a terra como o cheiro da madressilva de noite. Eleva-se por cima do mar.

Quase vejo o que podias ser tu, uma imagem de sombras que emerge da rebentação e caminha terra adentro. Trazes asas no cabelo, ganhas corpo e pele, anjo que se faz carne. O meu desejo azul.

Quase sinto o tempo que me fazes esperar, doce malícia. Engano a ausência, a cada sete ondas repito a canção que traz os amantes perdidos no mar. Tenho a certeza dos loucos, montei casa na primeira linha de terra.

E quando chegares, hei-de ser o primeiro a ver. Espero-te.

terça-feira, maio 09, 2006

Sal


Vejo-a nas praias, descrevo a cena como se a linha
do horizonte deixasse de existir, o mar deixasse
de respirar. Nesse instante não tenho morada nem
nome, serei apenas a infância, a malícia, a poeira,

os cactos à beira das estradas. Descubro a incerteza
e a palavra, o eco do que ficou abandonado. Tudo
me desperta, comove, desabriga — um amor, um lugar,
uma janela, o eclipse. Adormeço depois de fechar

as portas, a inspiração morreu há meses, escrevo
e volto a escrever, linha a linha, a mesma linha, palavra
a palavra, as mesmas palavras. O tempo é uma vaga
impressão de ter passado naquele instante em que

dizem que a terra treme, a alma nunca será essa coisa
perfeita, resguardada da luz, do cheiro da terra, das
vagas , do que poderia ter sido. Vejo-a nas praias,
ao longe, do outro lado do mar, entre risos.


F J Viegas

Pássaros - 2


As mulheres nunca cessarão de me fazer sentir com pés de chumbo, invejando os pássaros.
J. Machado Vaz
Sou escravo da alegria do mar.

Nem sei como começou a minha prisão. Sei que nalguma altura fui contaminado deste desejo amante que se me colou à pele. Que se me alojou no fundo do corpo e me escraviza, eu que tanto prezo a liberdade. No início era uma maré de fogo que me visitava, um acesso febril de sal, algo indizível e desconhecido. Ondas a rebentarem sem aviso, o peito aberto à espera do próximo golpe. Desprezei todos os sinais, pensei que tudo estava na minha mão, marés, dizia, e o fogo salgado cada vez mais forte. Custavam-me as horas secas, o mar ria longe de mim, rezava “quero-te livre e meu” como se tal fosse possível. Chegava e cantava-me cores de outras praias, ouvia-o como se as marés dependessem dessas dádivas, era livre e meu, ao meu regaço chegavam estrelas e sereias. Mas era eu que era cada vez mais dele, tudo dava por esse abraço transparente, esse banquete de sal em fogo. Depois tudo se concentrava na concha que apertava na minha mão, à noite.

Prendemo-nos pelo que queremos, dizem. Pelo que gostamos. Eu digo pelo que amamos sem escolha, pelo que perdemos docemente o pé e nos afundamos, e nessa hora somos sal, e algas, e sal de novo. Somos pertença dos mares que sitiamos, em tantas noites de espera debaixo das ondas em que tecemos redes.

Hoje percorro praias.
Chamem-lhe destino, não sei, acho que não.
Destino, esse sempre gostei de o traçar na mão com a ponta de uma navalha. Desafio predestinações, caminhos traçados, foi nessa têmpera que fui criado.
Olho para cima, vejo pássaros que demandam outros mares.

Eu recolho sinais.
Conchas, cabelos de sereia, a luz do entardecer, a geometria da falésia, ventos sussurrantes ou violentos. A cada momento me ilumino com a promessa de um sorriso azul. Onda após onda. Ilumino-me ou espero. Onda após onda. Prisioneiro do indizível e desconhecido, feito de sal.

quinta-feira, maio 04, 2006

Naus 2


Quando chega a noite acredito mais.
Nas coisas que não precisam de promessas, a cadência das ondas, o cheiro perfumado das laranjas, a relva molhada debaixo dos pés. Coisas misteriosas, encantos com que me encanto, uma voz azul, um sorriso no caleidoscópio, ilhas do outro lado do mar.
Quando chega a noite acredito que amei mais profundamente os amigos, os amores que choram e riem e têm todas as cores, palavras e silêncio. Que abraçam com força, que beijam as lágrimas que escondo e o riso que rimos.
Quando chega a noite acredito ainda mais nas princesas de asas de ouro, sei-o, tantas vezes descansei no seu regaço e me encantei nos seus olhos. E também em cavaleiros, bravos entre os cavaleiros, nos tritões, nos atlantes. Nos heróis errantes de Samarcanda, nas caravanas da seda.
Quando chega a noite acredito em mãos que repousem em mim, onde eu repouse. Na poderosa alquimia da pele, que exorcisa dragões, velas de uma barca que cruza os mares.
Quando chega a noite guardo essas canções no peito. Quentes e rugosas como as mãos antigas dos avós. Com cheiro a madeira, sal, chocolate. Eternas, digo. Como árvores num campo de alfazema.

Pássaros


Saímos da terra dos vulcões no crescer da tarde.

O ar era um mosaico de luz e sombra, como uma paisagem que brilha depois da chuva. Mas sem o cheiro húmido da terra. Apenas o vento salgado no meio do mar, na lonjura da costa, nas aves rápidas, no som mudo das ondas que não quebram, peregrinas que correm inteiras pelos sete mares.

A dez milhas encontrámos os primeiros caçadores marinhos, rasgam a superfície numa poeira de espuma, são incontáveis e repentinos, quase lhes sinto o respirar veloz. O cabelo está molhado, imagino o lado submerso do espelho, as caçadas nessa pradaria ao som de cânticos febris, uma horda mais antiga que o tempo que podemos sonhar, o dos chefes guerreiros e as suas tribos.

Deixam atrás de si marcas no mar, desaparecem como surgiram, nómadas de destino incerto. Depois, de novo esse silêncio fundo, ondulante, azul. Tão terrívelmente puro que até o mais suave dos gestos parece quebrá-lo.

Olho para a Inês, pouco mais tem que dez anos. O medo inicial tinha-se dissolvido no brilho dos olhos. Na magia do nunca-visto. Visitantes na terra dos atlantes, o coração salta no peito, tanto que é impossível, quase absurdo, falar. Um entendimento que se faz por dentro da pele, nesse mesmo sangue que partilhamos, coisas do DNA e do calor do aconchego.

Os motores param.
Ondulamos debaixo do céu, suspensos de um momento que pressentimos chegar.
E eles chegaram.
Bem mais suaves que as tribos de caçadores, antes famílias que brincam num domingo à tarde, saltam à volta do barco, mergulham de novo, são inesperados e ao mesmo tempo contidos, como se nos mantivessem sempre à distância de um olhar, nem mais nem menos.

Mergulhámos para o outro lado do espelho.
E o mundo ficou azul.
Não o azul que conhecia, dos mergulhos à vista de terra. Mas um azul completo e sem relevo, sem um ponto onde ancorar o olhar.

E vi-os. Eram como nós, afinal.

Grandes e pequenos, crianças, com surpresas e dias de brincadeiras, gestos que protegem, olhares, sorrisos. Eu também, com a Inês pela minha mão, famílias entre famílias, nadávamos numa emoção incontida.
Primeiro olharam, curiosos, posso jurar que dentro desse olhar havia uma voz. Depois, como pássaros voaram à nossa volta, rodopiaram num abraço. E cantaram, numa voz que nunca vou esquecer, palavras numa língua desconhecida e transparente. Cantaram todo um mundo por segundos, canções de sereias e marinheiros, a cor dos sete mares, as lágrimas perdidas dos naufragados, as ilhas encantadas de onde nunca se parte. Canções do tempo do mar eterno, histórias para sempre perdidas de reinos desaparecidos.

A caminho de terra, na luz depois do sol, perguntei-lhe: Gostaste?
- Nunca me vou esquecer, pai. Nunca. E não tive medo, viste?
Eu também não me esqueço, Inês.
Meu pequeno pássaro sem medo.