sexta-feira, junho 30, 2006

Mais ou menos poemas de amor


1

Por ti
deixava de meter
o dedo no meu belo nariz
e de roer as minhas unhas deliciosas

por ti mandava arranjar os dentes
e comprava um colchão

por ti
matava a minha barata favorita
que vive no rodapé
junto do estirador


2
Espanto-me
por que
nós
dormimos
essas noites
e o que perdemos
3
Quantos dias
pensas
que vou deixar-te
frio não é a palavra exacta
meto um diamante
debaixo da lingua
e tu
podes ir à procura dele
4
podes ter a certeza
que da próxima vez
que formos para a cama
ficarei quite
vou enganar-me no teu nome
e hás-de pensar
que aconteceu
acidental
Diane di Prima

quinta-feira, junho 29, 2006

Era Setembro


De tarde, na varanda, as mulheres lá de casa desdobravam lentamente o tempo, costuravam as palavras, rematavam com o olhar o que não se dizia, sombra e mistérios, o cheiro da compota ao lume, canela e casca de limão, sorrisos e alguns suspiros. Havia livros enormes, receitas e romances poibidos, era Setembro e o ar amadurecia com as romãs.

Do quintal chegava o cheiro da uva pisada, da terra que paria os últimos frutos, as vozes cruas dos homens, o espaço entre as palavras afiado e definitivo, vermelho e negro. Uma indefinível sensação de sangue derramado, como se amortalhassem a terra, um sacrifício necessário feito a ferro nu. Matamos-te para que renasças, uma alquimia de dor e ternura rude.

Desse tempo de matanças não recordo alegrias nem tristezas. É alguma coisa que está para além do que se possa sentir, que vem do fundo da terra o do ar. Uma pulsação contida, expectante, a preparação dos milagres, que estavam para vir.

Talvez com os anjos, que cruzavam rápidos o céu mesmo antes da noite chegar.

quinta-feira, junho 22, 2006

Nós temos cinco sentidos




Nós temos cinco sentidos:
são dois pares e meio de asas.

- Como quereis o equilíbrio?


David Mourão-Ferreira

quarta-feira, junho 21, 2006

Mares


Apenas isto.

A vibração da areia debaixo do corpo nu, deitado com os braços em cruz, são passos, os teus talvez, faço força para não abrir os olhos e revelar o mistério. Se te aproximas ou afastas, meço a distância do som sem som, das ondas que deixas na praia ao andar.

Andar sobre a linha da maré, arrastar os pés contra o mar, contra o ar quente nos cabelos. A canção do peito em forma de sal e espuma, o gosto animal, o novo mundo. A vontade de nunca parar, estou sozinho contigo, esperam-nos noutro lado, e eu espero que esse lugar seja bem longe, para lá do equador.

Os cabelos que num ultimo momento me tocaram o pescoço, nem sei se dormias, a trinta mil pés de altitude o oxigénio é rarefeito, mas nem assim me faltou o ar, respirei o lento mover do peito, à distância em que da pele se sente apenas o calor. Espelho contra espelho, sobre o oceano. Tão curto.

quinta-feira, junho 08, 2006

As palavras


Havia sol lá fora, lembro-me, entrava em tiras pela janela, a luz recortada pelos estores. Mas o ar da sala era feito de um silêncio pardo, denso, uma bruma feita de desconhecido, mistérios obscuros, expectativa. Um mundo novo sem caminhos seguros, onde me tinham deixado à minha própria mercê, sem mapas, bússola, ou o cheiro quente da pele.

Agarrava-me à carteira como a uma jangada, ao toque familiar da madeira, a tudo o que fosse mais primitivo, os sentidos, o barulho dos carros, o sol recortado, vozes lá fora, cheio de uma solidão que tinha algo de fatal, de irremediável como o sol das cinco da tarde no deserto.

Abrimos então o livro, o instrumento novo que, diziam, nos ia guiar através desse continente. E eu sem saber sequer como funcionava, qual a maravilha que o fazia viver, de que forma se animava, quanto mais usá-lo como um descobridor de mundos. O primeiro gesto foi solene, e fácil, mais fácil até do que tinha imaginado. Lá estavam elas, as letras, e debaixo de cada uma, uma imagem, A de águia, B de burro, C de coelho, D de dado, e por aí adiante até ao U de urso, V de veado, X de xadrez, Z de Zebra. Ainda antes de as decorar já a águia tinha caçado o coelho, o urso jogava xadrez com o veado, a zebra era um burro de pijama.

Palavras.

Cresceram no assombro dos dias, nos encantamentos e dores, nas flores e feridas talhadas na pele. Ganharam cor, cheiro, sabor, todos os sentidos e ainda outro que é indizível mas que todos conhecem, algo que está por dentro do corpo. Ganharam essa textura para todo o sempre. E desde então, para mim, sol é o ar recortado à navalha, límpido, em carne viva, sobre o grande areal, Junho é a cor laranja nas vidraças da cidade, dor é um corredor branco com muitas portas, noite é o espaço entre as luzes, as estrelas, os sons, tarde é a areia fria com ondas lentas numa camisola de lã, chuva é o beijo adiado num caminho entre as árvores, riso é correr nu para o mar, solidão o ruído do comboio na tarde de domingo.

Palavras.

Tenho o meu próprio alfabeto, esse que foi crescendo comigo, um sentido transparente e íntimo. Sei falar outras línguas, ouço-as nas ruas, nos cafés, leio sinais e éditos, mas não são a minha, não me reconheço nelas, não são o meu falar. Nem preenchem o meu silêncio, não dão nome àquilo que não pronuncio. Na minha língua não existem “relações”, mas sim amigos e amores, amigos das horas nocturnas e do sol a pino, do vinho quente, das horas boas e más, amigos perdidos e achados, distantes e presentes. Amores fugazes e doces, amores perfeitos, amores sangrantes, animais, ternos e lentos, amores com azul ao fundo.

Tal como nesse dia, em que o ar era denso e desconhecido, atravesso continentes, novos países, oceanos, desertos. Abro solenemente os dias, uns fáceis, outros difíceis. Tenho mapas, desenho outros. Junto sentidos a palavras, o lilás dos jacarandás que se cruza com o amarelo das mimosas, o gin do fim da tarde, o sumo de laranja, o café de manhã, o cigarro na varanda, a noite amanhecida, a relva debaixo dos pés, a mão que me desenha o corpo. Outros há que não têm palavras, talvez um dia nasçam como um dialecto do novo mundo, talvez de noite ou ao amanhecer, certamente numa hora desabitada. Elevam-se do silêncio como a luz da madrugada, cheiram a azul, esteva, sal.