sexta-feira, março 31, 2006

Patagónia


"Sempre lá quis ir", disse eu. "Também eu", acrescentou. "Vá lá por mim". Fui. Mandei um telegrama ao Sunday Times: "Fui para a Patagónia". Na mochila leveva a Viagem à Arménia, de Mandelstam e No Nosso Tempo de Hemingway. Seis meses mais tarde, voltava com o esqueleto de um livro, que desta vez, foi mesmo publicado. Enquanto compunha as frases, pensava que contar histórias era a única ocupação concebível para alguém supérfluo como eu. Estou mais velho, um pouco mais empenado e ando a pensar em assentar. Agora o mapa de Eileen Gray está no meu apartamento. Mas o futuro a Deus pertence."

Bruce Chatwin

quinta-feira, março 30, 2006

Amor no meio do ar


AGARRA-ME!

Amo-te, confio em ti.
Amo-te

AGARRA-ME!

Agarra o meu pé esquerdo, o meu pé direito,~
a minha mão!
aqui estou eu pendurada pelos dentes
90 metros acima do ar, e

AGARRA-ME

Aqui vou eu, voando sem asas,
sem pára-quedas, fazendo uma dupla tripla
super-cambalhota salto mortal!

AQUI MESMO SEM
REDE E

AGARRA-ME!

Agarraste-me!
Amo-te!


Agora é a tua vez



Lenore Kandel

quarta-feira, março 29, 2006

Fadas e duendes


Ficava mesmo em frente à casa, no fim da alameda que descia pelo jardim. Era uma floresta imensa, uma nave feita de cheiro a seiva, ninhos, caruma e espinheiros, o voo furtivo de alguma ave, borboletas, lagartixas. Uma rede de caminhos que íamos marcando dia a dia, num labirinto de direcções que só faziam sentido na geografia da imaginação, o caminho de baixo, o da pedra grande, o da clareira, o da cabana, o do pinheiro velho. Os mais suaves e os outros, que nos arranhavam as pernas, talvez os mais apetecidos. De chapéu largo e calções, sentados no regaço da sombra, desembrulhávamos os mantimentos trazidos para a travessia, pão com marmelada, figos e chocolate, e preparávamo-nos para enfrentar estoicamente as formigas e a caruma que nos picava as costas.
No ar nadava o cantar das rolas e o sussurro dos duendes, sempre furtivos e bisbilhoteiros. “Talvez um dia apareça uma fada”, pensávamos, e fazíamos muita força com o coração, de olhos bem fechados.

Era um mundo sempre em mudança, sempre diferente conforme entrássemos pelo canto do muro velho, pela horta vizinha, ou pelo campo de jogos. Uma floresta imensa, digo-vos. Tinha para cima de cinquenta pinheiros e dois ou três eucaliptos antigos, para não falar das duas famílias de duendes que a habitavam há várias gerações. Só fadas é que nunca conseguimos ver, por mais que fechássemos bem os olhos e fizéssemos força com o coração.
Tempo – tanto tempo…- depois passei por lá. Onde antes havia verde está agora o grupo columbófilo, casas, e mais acima uma escola. Cortaram as árvores, dizem-me. Eu cá não acredito. Não é fácil acabar com uma imensa floresta, é demasiadamente sábia. Nem arrasar com as casas dos duendes, desses nem vale a pena falar. Por mim acho que a floresta largou amarras e anda aí a navegar pelo céu à procura do país das florestas, manobrada pelas famílias de duendes.

E mais.
Vi a fada, e nem foi preciso fazer força com o coração nem fechar os olhos. Numa enorme parede, bem no centro da escola, lá estava ela, tal como a imaginava. Varinha mágica entre as mãos transparentes, o vestido de todas as cores, o sorriso mágico debaixo do véu, o rastro de estrelas. Olhava para o céu, tenho a certeza que sabia por onde andava a floresta, só passou por ali para deixar aos meninos pão com marmelada, figos e chocolate.

terça-feira, março 28, 2006

Na volta do correio...


Posso ter defeitos, ser ansioso e ficar irritado algumas vezes, mas não esqueço que a minha vida é a maior empresa do mundo. E que posso evitar que ela vá à falência. Ser feliz é reconhecer que vale a pena viver, apesar de todos os desafios, incompreensões e períodos de crise. Ser feliz é deixar de ser vítima dos problemas e se tornar um autor da sua própria história. É atravessar desertos fora de si, mas ser capaz de encontrar um oásis no recôndito da sua alma. É agradecer a Deus cada manhã pelo milagre da vida. Ser feliz é não ter medo dos próprios sentimentos. É saber falar de si mesmo. É ter coragem de ouvir um "não". É ter segurança para receber uma crítica, mesmo que injusta. Pedras no caminho? Guardo todas, um dia vou construir um castelo...


Fernando Pessoa

sábado, março 25, 2006

Amor e chocolates


Penso nos velhos.
Alguns morrem na vida, vão desaparecendo quando perdem maridos ou mulheres, irmãos de sangue. Ou de uma forma mais terrível, quando perdem filhos, quando se apaga neles essa centelha de eternidade, talvez a mais dura provação. Outros vão-se transformando em árvores. Os seus braços e as mãos, finas ou rugosas, estendem-se em ramos, soltam os cabelos brancos como ramagens. Sorriem um sorriso sem tempo, eterno e íntimo, com que aquecem o mundo. Estendemo-nos à sombra das suas palavras, das histórias que sussurram como uma brisa quente que lhes escorre dos lábios, uma música do vento nas folhas. São generosos com quem se senta à sombra do seu silêncio, com quem despreza por instantes a enumeração dos minutos e das horas. Sentados à sua sombra o tempo é uma eternidade. Abraçamo-os e sentimos a seiva pulsando debaixo da madeira do corpo, como se sempre lá estivesse, como se tivesse atravessado todas as gerações desde o princípio do mundo.
Os velhos são os secretos aliados das crianças. Como elas estão dispensados da voragem das horas. Todo o seu espaço é o espaço de um tempo sem tempo, onde desfilam histórias e se oferecem secretamente chocolates. As crianças correm e os velhos recolhem-nos nos seus olhos, como um manto protector que lhes estendem, à distancia que os seus passos já não conseguem acompanhar. Como árvores que criam os sonhos dos homens, os velhos respiram o crescer das crianças. Aquecem-lhes os sonhos a bafo até ao primeiro dia de escola, fazem-lhes torradas com doce, fazem o doce nas horas da escola, e depois sorriem ao lanche. Vão buscar às estrelas vida que os leve até um dia. Em que sejam as crianças a amparar os seus passos. E só então morrem, mas apenas a madeira do corpo que se funde com a terra. Deixam espalhadas pela casa caixas de chocolate, doces, torradas. Histórias que ainda não sei contar. Mãos transparentes e rugosas e um olhar que pousa como um anjo da guarda.
São avós de todas as crianças do mundo

quinta-feira, março 23, 2006

Um mover de mão


toco no que poderia ser uma amêndoa quente,
ou a maturidade do outono se nos abríssemos ao meio,
clara e demoradamente, com essa demora que é própria das chuvas.
noto que não sei ao certo se um mover de mão tem um ritmo seu,
um ritmo que não partilhe com o espaço que atravessa,
uma intenção distinta da de uma folha que se lança à terra.

quero crer que tudo se faz de um só ventre, que tudo ocupa o tempo
sem diferença, que uma só voz pronuncia todas as palavras desde sempre.
quero crer que se gritar bem alto uma canção ressoará num ouvido,
que se disser “nasci da imaginação de um lírio” meus pés firmarão
raízes no azul dos rios e rebolarei a eternidade no leito dos campos,
internamente, como se não me fosse estranha a vida da seiva.



Vasco Gato

quarta-feira, março 22, 2006

Há esta praia que me visita


Há esta praia que repetidamente me visita.

Um promontório de peito aberto ao mar, carregando ao colo a casa, isolada como um filho único pelo qual se dá a vida. Um vestido de urze, rosmaninho, esteva, cobre a nudez da rocha como lã grossa, novelos de verde perfumados.
Grossas veias rasgadas por ribeiros, caminhos de terra amarela desenhados no declive do corpo como dedos de um amante.
Por um desses caminhos se chega à casa. Pelo planalto das costas, a curva dos ombros, há sinais, marcas, árvores baixas, flores pequenas como a penugem, cruzo-me com o ar no festejo do dia, na pressa do beijo.
Antes mesmo, o caminho estreita como um túnel vegetal, guia-me o instinto, o cheiro, a luz do mar que se adivinha ao fundo, mergulho, quase perco o pé, respiro de novo, sinto a pele debaixo da lã vegetal, por dentro da pele, por dentro da rocha. Depois o céu abre-se subitamente, há gaivotas pousadas no ar, os pés assentam no céu, a brancura da cal como um pano de linho no qual se rasgam janelas, telhado, portas, ângulos de luz. Como se nascesse de cada vez que lá chego.

Mais abaixo, o areal. A maré baixa que deixa um espelho entre a terra e o mar, fronteiras de luz momentânea, irrepetível. É onde nasce a espuma que se faz mar. Como se a rocha se fizesse terra, a terra areia, a areia luz, a luz espuma, a espuma azul, e depois novamente o céu.

Nela senti a areia escaldante e a outra mais fria que fica por baixo, entre os dedinhos dos pés. Senti o frio salgado do primeiro mergulho, gotas que secam na pele acariciada pelo sol.
Vi como o dia se dissolvia no ar, como a falésia guardava a luz até à outra manhã, junto à casa. Nela descobri que o silêncio é feito de tantos sons, uma corrente de música embrulhada no ar e na terra, o canto das gaivotas, talvez sereias. Ouvi palavras e escutei os dedos que seguravam nos meus. O riso e a noite. Um carro a desaparecer na escuridão, e eu ainda a saber a sal.

Aprendemos a viver de muitas maneiras, até entre as fissuras da parede. Mas o meu mundo tem silêncio e música, palavras e pele, estrelas e caminhos. Casas abraçadas no regaço de promontórios. O doce sabor do vinho no sorriso dos amigos. O cheiro das primeiras chuvas, o cheiro do primeiro sol. O indizível de um beijo, o brilho do olhar. Um carro a desaparecer na noite, a pele a saber a sal, a alegria do cabelo em desalinho. A areia nos pés.

E cada vez que procuro um sentido para a vida chegam-me estas pinceladas, momentos e acasos, talvez anjos. Caminhos de com que tecemos os dias. E então a alma recosta-se, intima. Infinita.

domingo, março 19, 2006

No outro lado da noite


No outro lado da noite
o amor é possível.

- leva-me -

leva-me entre as doces substâncias
que morrem cada dia na tua memória.


Alexandra Pizarnik

Chove no Porto


Chove no Porto.
Ando no meio desta cidade-rio, feita de granito e água, algas, flores, e gaivotas, nado pela Boavista acima, alma de homem-peixe. Nas margens correm jardins, palácios, castelos, o quadriculado das janelas esconde o cheiro de salas antigas feitas de cheiro a madeira e alfazema, lençóis de linho, vozes rugosas, densas, animais. Há varandas com trepadeiras, jardins escondidos, a ondulação de um poema sussurrado, histórias sanguineas de paixão, a geografia do destino, ou do acaso, vá-se lá saber.

Sempre gostei do Porto, que na verdade não conheço bem. É um aperto no peito de encontro à rocha, que logo voa, um sentimento que ao percorrer a cidade percorro também recantos desconhecidos de mim, coisas de sangue, maravilhas que me arrebatam para além do corpo.

Trazemos cidades dentro de nós, li há pouco tempo. Cidades por nós imaginadas e criadas, praças, avenidas, a luz ao entardecer, ruídos, sombras, gente. O castelo real, museus, faróis, o bairro dos pescadores, jacarandás e acácias, as margens fervilhantes do rio, barcos, o nosso corpo no limite da pele. Cidades intimas que desvendamos em cada uma que visitamos, como um foco de luz que ilumina recantos de alma escondidos.

Mas no Porto desvendo a densidade das minhas sombras, o meu rio subterrâneo, a minha alma de homem-peixe, coisas de sangue que se dizem à noite, maravilhas indizíveis, flores de pedra, gaivotas, cheiro a madeira, o linho sobre a pele, fogo e palavras ditas em silêncio.

quarta-feira, março 15, 2006

O vento que sopra do mar


Parar um pouco na tarde, sentar-me, o cheiro a café, um íntimo cigarro, as imagens penduradas na parede, os objectos familiares, uma música de aguarela como a luz deste dia, a pulsação da pele, pequenas coisas indefinidas como palavras invisíveis.
Já arrumei as camisas na mala, o PC, os livros, despedi-me do sorriso da filha. Agora rumo a norte.
Há um vento que sopra do mar, levanta a cortina como uma mão de luz. Palavras transparentes.

quarta-feira, março 08, 2006

O país para onde vai o trovão e as coisas desaparecem


Por vezes dou por mim a sentir nostalgia de locais invividos, apenas habitados pelo olhar que os percorre. O espaço entre as estrelas, onde sempre achei que nascia o ar, o manto lilás na hora em que muda a luz, o doce algodão das nuvens animadas em mil formas, o canto dos anjos na brisa matinal.
São a matéria ritmada do imaterial. Neles deito a alma, que se estende na imensidão do espaço, sou eu sentado numa rocha a ver a noite, ou a diluir-me no ar, enquanto apanho estrelas no meu regaço. É o círculo dentro do qual convivo com os meus lobos, heróis, feiticeiras.
É uma parte de mim que trago desde que me conheço, e que tem atravessado os dias difíceis ou brilhantes, calmos ou turbulentos, muitas vezes escondida no alforge como uma poção mágica que me ajuda a enfrentar as legiões.

Mas é junto à pele quente da amada que o café tem outro sabor.
No gesto largo dos amigos que o vinho é mais quente.
No sorriso limpo dos filhos que as lágrimas têm mais sal.

Como dizia ela, é melhor olhar para o céu que lá viver. Um país para onde vai o trovão e as coisas desaparecem.